Amolada/desmiolada

Todo mundo que tem alguma sensibilidade e um bom par de ouvidos odeia ir ao dentista. Se você adora ir ao dentista ou ele é extremamente atraente, você adora sentir dor ou acabou de descobrir sobre o gás do riso e quer qualquer desculpa para usá-lo de novo. No meu caso não era nenhuma das opções anteriores.

O dia em que eu descobri que precisava tirar todos os meus sisos, eu desanimei. Eu realmente havia esperado que eu havia sido uma das pessoas com o bilhete dourado, uma das escolhidas pela evolução que nunca teria que passar por isso. Mas, pelo jeito eu sou tão evoluída quanto a maioria, o que — considerando o número de pessoas hipnotizadas por modas nas redes sociais, como o desafio de comer sabão em pó e dieta keto — é decepcionante.

Então eu me consultei com um cirurgião dentista, que afirmava fazer o procedimento de forma rápida enquanto eu estaria dormindo. Dr. Márcio havia me oferecido três opções de sedação: apenas a local, uma pílula que me faria dormir e me deixaria sonolenta e com amnésia da cirurgia, e a anestesia geral. Por passar minha infância lendo contos infantis, eu estava bem familiarizada com a história da Cachinhos Dourados, e segui sua lógica: escolhi a opção mediana, nada muito extremo, nem muito fraco. Maravilha, pensei, ia ser a única parte positiva disso tudo.

Marquei uma data e um dia ela infelizmente chegou. O consultório ficava localizado em um prédio comercial com tanta segurança que as catracas tinham reconhecimento facial e nos elevadores não haviam botões dentro deles, para que você entrasse apenas no andar que pretendia ir. O consultório era impecavelmente branco, e a recepcionista me chamou tão rápido que nem tive tempo para tomar um copo d’água. Após me dar toucas para colocar na cabeça e nos pés, ela me levou para uma salinha isolada que estava esperando por mim. A primeira coisa que notei foi o som calmo de notas de piano. Era tão leve que parecia reverberar apenas para o teto da sala. No centro, uma poltrona reclinável de couro confortabilíssima e ao seu lado, um cilindro de gás usado para ocasiões diferentes no canto da sala quadrada.

A assistente do Dr. Márcio me convidou a sentar na cadeira e estendeu sua mão para mostrar um pequeno comprimido azul, o Dermonid:

“Coloque debaixo da língua e espere dissolver. Não engula.”

Certo, instruções simples.

“Não posso engolir, né?”

“Só coloque sob a língua e espere dissolver”.

Ela delicadamente fechou a porta atrás dela e eu fiquei só, com o comprimido envelopado por alumínio na mão. Com o dedão, empurrei o comprimido para que se soltasse da embalagem e o posicionei embaixo da língua. Agora era só esperar. E não engolir.

Tentei posicionar o comprimido de maneira lógica, mas sem querer deixei a língua roçar na substância que havia começado a se desintegrar. Em questão de segundos senti um gosto extremamente amargo na boca. Afastei a língua. Opa, isso não é bom. Ok, não posso engolir nem descansar a língua completamente nele. Mas, então, surgiu uma terceira preocupação: a saliva. Quantidades absurdas estavam se acumulando na minha boca fechada e eu não tinha como me livrar dela. Não poderia engolir, pois partes do remédio iriam junto. Será que minha boca vai absorver a saliva também? Ou se eu ficar com a boca fechada por tempo o suficiente o corpo naturalmente vai achar uma solução? Precisava acelerar o processo antes que eu encharcasse a impecável poltrona de couro com a minha baba.

Antes que eu pudesse agir, algo mudou. O meu corpo parecia um pouco mais pesado, como se não fosse meu corpo e nenhuma daquelas partes me pertencia.

Então senti as primeiras sensações de efeito nos meus pés, cruzados um sobre o outro nas pernas esticadas. Elas estavam começando a ficar dormentes também. Minha cabeça parecia diferente. E foi aí que me ocorreu que essa experiência poderia ser bem mais agradável do que eu estava imaginando. Eu poderia ficar tranquilamente chapada. Aquilo poderia ser, na verdade, uma oportunidade. Experimentar uma droga de maneira segura, com profissionais perto para que nada desse errado. Assim, eu tinha que fazer a experiência valer a pena. Por curiosidade resolvi testar os limites da minha língua e relaxá-la um pouquinho. O amargor foi imediato e a recolhi rapidamente.

Meus pensamentos pareciam rápidos demais para o remédio estar funcionando e me ocorreu uma nova preocupação: e se iniciarem a cirurgia antes do remédio ter seu efeito completo? Tem que ter uma forma do efeito começar mais rápido. Tentei mais uma vez. Desta vez, pressionei a língua impulsivamente contra o remédio, empurrando-o para baixo, para que ele fosse absorvido mais rápido. O gosto do Dermonid era tão ruim que doía. A sensação de milhares de mini agulhas perfurando minha língua fez toda a tranquilidade do meu corpo dissipar. Meus olhos se recolheram, como se quisessem retornar às órbitas e meu lábio automaticamente franziu em uma careta por trás da máscara de rosto.

Parecia ter funcionado, um pouco. O meu corpo estava captando alguns sinais diferentes. Mas sabia que ainda estava longe de ficar chapada. Talvez houvesse formas melhores de estimular o efeito. Fechei os olhos. Pensei em clipes de músicas alucinógenos. Imagens soltas de cabras saltitando em montanhas de sal. Da sensação do gás do riso de quando eu tive que extrair outros dentes quando era criança. Até tentei me concentrar na música, mas ela havia parado. Talvez fazer uma mindfulness meditation? Não, se o remédio é bom mesmo, nada disso seria necessário.

Será que ele estava mesmo funcionando? Fecho os olhos. Tento relaxar. Eu realmente gosto de drogas, pensei. Era só dormir. O quão difícil deveria ser? Eu fico cansada às onze da noite todo dia e naquela noite havia dormido apenas cinco horas para ir ao consultório cedo. Isso deveria ser tranquilo.

“Por que está no seu celular?”, a assistente pergunta, ao entrar na sala esperando me encontrar sonolenta. Ela não parece feliz. Eu havia escapado da sala e ido até a recepção onde deixei minha bolsa com o celular dentro. Retornei silenciosamente para que ela não percebesse.

“Estou escrevendo sobre isso,” eu disse.

“É para você relaxar.”

“Não estou conseguindo. Acho que o efeito não está dando certo. Tem como me dar outra dose?” Ela balançou a cabeça dizendo “não”, como se eu fosse doida.

“Estou com muita saliva. O que eu faço?”, eu tentei dizer. Mas com a boca cheia eu soava como um urso agoniado.

“Pode engolir a saliva.”

“Mas e o resto do remédio?”, questionei.

“Pode engolir, o efeito vai acontecer mais rápido.” Tá bom, então. Obedecendo, engoli todas as substâncias.

Após dez minutos, o dentista entrou na sala. Na realidade, ele abriu a porta lateral esquerda, me dando um susto, pois pensei que era uma parede regular. Era a passagem para a sala dele. Ele falou algo sobre adiar, mas eu havia liberado minha agenda do trabalho para estar ali e não podia outro dia.

“Bom, então vamos começar.” Simplesmente assim. Sem drogas, na marra.

Dentistas são mentirosos. Me desculpa se você é um, não é pessoal. Sei que faz parte do trabalho de vocês tranquilizar o paciente para ele relaxar e vocês poderem terminar o serviço o mais rápido possível. Mas assim que ele percebe que as palavras tranquilizantes não são reais, isso só nos deixa mais tensos. Eu digo isso porque em uma hora foram me contadas dezenas de balelas quando eu só pedi para ser informada de cada etapa do processo. Mas não antes do começo excruciante.

Barulhos e sensações estranhas preencheram minha boca. A alfinetada da anestesia local, um aparelho de metal que mantinha minha boca aberta e fixa, e a luz cegante me fizeram fechar os olhos. Até eu ouvir um dos barulhos mais detestáveis da história da humanidade.

Aquele som que absolutamente ninguém suporta. Acho que um elemento em comum entre todas as pessoas da terra é o ódio mútuo por aquela máquina, você sabe qual é. Acho que se o líder da Palestina e de Israel sentassem para discutir sobre esse instrumento detestável, que range e corta, as coisas lá ficariam bem mais amigáveis. Ou eles iam perceber uma genial máquina de tortura, quem pode dizer?

“Ah, achei que você estava dormindo”, ele falou quando abri os olhos. Quem me dera, pensei.

“Bom vamos ter que cortar cada um de seus dentes para retirá-los daí. Mas já, já vai passar. Você só vai ouvir um som um pouco desconfortável.”

Ali estava. Os eufemismos que eu tanto odiava. Sempre acreditei que era melhor se preparar para o pior do que receber uma surpresa desagradável. Fechei os olhos mais uma vez, enquanto a máquina pior que mortífera perfurava meu dente. Minhas pernas esticaram em agonia e minha mão se agarrou no apoio da cadeira. Não havia o que fazer, apenas esperar os segundos intermináveis passarem.

Até que o barulho insuportável cessou. O cheiro de queimado pairou sobre o ar.

“Acabou”, o cirurgião dentista disse. Acabou? Como assim, acabou?

“Que dente grande você tem!” Ele exclamou. “Você está indo muito bem, sabia? Muito, muito bem. Está tudo bem, viu só? Não há nada para se preocupar. Você está bem, não é?”

Ele estava falando comigo? É sério? Ah, é claro que estava. Parece que é um requerimento para ser dentista. Suas aulas da faculdade acabam. Você passa em todas as provas. Está pronto para se formar, só resta pegar o canudo. Mas no dia da cerimônia seus professores te avisam que há uma última etapa que você e seus colegas precisam realizar antes de oficialmente se tornarem dentistas:

“Mas antes você precisa fazer um juramento”, diz o reitor.

“Um juramento, do quê?”

“Jure que SEMPRE irá conversar com seus pacientes quando eles estiverem na cadeira, PRINCIPALMENTE se o paciente não puder responder.” Acho que essa seria a única explicação para aquele comportamento tão desconfortável.

“Pronto. Um quarto de um dos dentes já foi.” UM QUARTO? De um dente?! Então na realidade era dezesseis avos? Uau, fração. Realmente usamos elas na vida real.

Mas, é. “Já acabou” foi dito 15 vezes enquanto ele se preparava para ligar a máquina mortífera de tímpanos mais uma vez, pronto para a próxima rodada. Ele desligava. Falava que havia acabado. Me dava um mini discurso motivacional (pelo jeito, minha cara de dor estava transparente como nunca) e depois entrava novamente.

Após cada fatia de dente, Dr. Márcio utilizava outro instrumento para extrair os pedaços.

Ele fazia força com o objeto contra minha mandíbula e de repente meu medo era completamente novo: ela ia cair. Gemi alto e pedi, sentindo minhas cordas vocais lutarem, para ele tomar cuidado, pois minha mandíbula já era travada.

“Sem problema,” ele prosseguiu, colocando peso sobre meu maxilar. Na terceira vez que ele fez isso, a pressão sobre o pedaço de dente fez com que ele voasse para dentro, pronto para navegar minha garganta. Em um movimento rápido, Dr. Márcio virou minha cabeça para a direita, evitando tal desastre. O movimento brusco fez meu pescoço doer e eu ficar completamente estupefata. Mas ele apenas esticou a mão para dentro da boca, removeu o dente e prosseguiu como se nada tivesse acontecido.

Queria poder me distrair, mas estava amolada demais para pensar em outra coisa. Há, amolada. Será que agora que eu estou perdendo alguns molares estou ficando desmiolada? Parece que sim.

“Acabou”, ele disse. Antes de ligar a máquina. De novo. “Falta cinquenta por cento agora”. Será que esse homem entende o conceito de algo acabar? Ele entende o significado desta palavra? Ou ele realmente não entende, ou ele quer deixar meus problemas psicológicos sobre confiar nos outros ainda mais profundos.

Quinze minutos depois, o barulho insuportável cessou. Pela sétima vez naquela hora ele fez uma pressão sobre a minha mandíbula. Eu soltei um gemido de dor, como um filhote cujo rabo acabou de ser pisado, e ouvi o que parecia o centésimo “CRACK” do pedaço de dente saindo do lugar, quando ele falou mais uma vez:

“Pronto, acabou.”

“PARE DE DIZER ISSO!”, eu quis berrar. Mas obviamente isso nem sequer era possível. Mas, ao contrário das últimas vezes, ao dizer isso ele apagou a luz de cima. Sua assistente se afastou da cadeira. Ele parecia sorrir com os olhos e meus músculos da perna que estavam tensos relaxaram um pouco. Desta vez era real.

Não me orgulho em dizer que chorei naquele dia. Se foi de raiva, de dor ou agonia é difícil dizer. Mais tarde sua assistente me explicaria por mensagem que o remédio funciona diferente no metabolismo de cada paciente. Um detalhe que ambos haviam deixado de fora quando na consulta prévia. Eu havia feito mil perguntas sobre a anestesia. Se o problema foi meu metabolismo ou as instruções errôneas sobre engolir da assistente eu nunca tive como saber. Mas finalmente, realmente, certamente havia acabado.

A assistente esticou o braço e me mostrou um pequeno pratinho com os quatro sisos avermelhados:

“Quer ficar com eles?”, ela perguntou, como se estivesse falando de filhotes em uma feira de adoção.

“Ugh, não”, respondi, de maneira mais abrupta do que eu pretendia. Nunca mais queria ver um siso na vida.

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