“Viva a morte!”

Da esquina, já era possível perceber a barafunda que se instalava em frente ao mercadinho do bairro. Quando me aproximei, entendi o que se passava: um senhor corpulento, de cabelos grisalhos engomados, que usava sapatênis e uma camisa polo em tom escalafobético tentava entrar no estabelecimento sem usar máscara. Barrado pelo segurança, berrava pelo seu direito de andar sem um pedaço de pano a lhe tapar a cara e esperneava que o país estava virando uma ditadura, ceifando as “liberdades individuais”. Com uma investida patética, tentou entrar à força, mas foi facilmente contido pelos funcionários. Passou, então, a tentar humilhar o segurança, desfiando impropérios como “seu guardinha de merda”, mas este permaneceu impávido, como se não o ouvisse. (Pensei comigo: talvez se o velho fosse negro e periférico, a história seria outra…, mas isso é tema para outra crônica).

A confusão rocambolesca, no entanto, não dava mostras de se findar. O tiozão do sapatênis permanecia ali, com o dedo em riste, esbravejando vitupérios e se aferroando a argumentos que pareciam ter brotado de um desses grupos obscuros de WhatsApp. Decidido a ajudar a tentar pôr fim àquele quiproquó, aproximei-me do bufão. Falando em um tom de conversa informal – na expectativa de que ele parasse de berrar –, disse-lhe o óbvio: que o uso da máscara é obrigatório não só para que ele se proteja, mas também para minimizar o risco de contágio aos outros cidadão. Pacientemente, citei um estudo científico que eu tinha lido naquela manhã, elaborado por universidades gaúchas e que apontava que o uso da máscara reduz em 87% as chances de se contrair o novo coronavírus.

Foi o que bastou. O senhor sacou uma máscara do bolso e, teatralmente, a atirou no chão. Voltou-se para mim e, como um desvairado, gritou: “Ciência?! Eu quero que a ciência se foda! Eu odeio a ciência! Odeio!”. Saiu pisando duro em direção ao outro lado da rua, onde seu carrão estava estacionado. Arrancou, acelerando o possante, com cara de demônio. Incrédulos, os funcionários e a meia dúzia de clientes que foram obrigados a assistir aquele espetáculo bisonho balançaram a cabeça e voltaram às suas respectivas vidas. Naquele dia, o Brasil registrou mais de 2,2 mil mortes em decorrência da Covid-19. O recorde, até então – e que, como sabemos, foi solapado posteriormente.

Pelo extremo oposto, o episódio me fez lembrar de dona Constância, avó de um colega de adolescência. Tratava-se de uma dessas velhinhas de interior, muito respeitosa e imersa em sabedoria popular. Em um dia desses, a tevê estava ligada num programa qualquer, em que o hipnólogo Fabio Puentes dava entrevista – o nome dele permanecia ali, estampado em uma barra ao pé da imagem. Para entrar na conversa, dona Constância perguntou quem era o figura. “Ô, dona Constância! É só ler ali, nos créditos”, disse o Cabeça, um dos amigos. A senhorinha corou, humilhada. Criada em um rincão em que a educação não era prioridade (e quase proibida) a mulheres, dona Constância era analfabeta. Tinha uma vergonha colossal de não saber ler nem escrever – apesar de isso estar relacionado a uma série de fenômenos históricos e sociais sobre os quais ela não tinha controle.

O caso é que dona Constância tinha vergonha mortal do que considerava ser uma ignorância. Hoje, em contrapartida, não é raro que encontremos nos mais diversos estratos sociais e postos – inclusive na Presidência da República – quem se orgulhe da própria ignorância. Aí, discussões complexas e que envolvem a vida de uma nação são reduzidas a bravatas ou frases de efeito. Quase 300 mil mortes por Covid? “E daí? Não sou coveiro” e “chega de mimimi”. A vacinação está se arrastando após meses de negligência e/ou patetice logística? “Vou comprar vacina na casa da sua mãe”. Especialistas e autoridades sanitárias indicam a urgência em se adotar medidas restritivas? “Tem que deixar de ser um país de maricas”. É como se estivéssemos entre uma ode à ignorância e o culto à morte.

Essas divagações entre o esclarecimento e as trevas me fizeram lembrar de um célebre embate ocorrido na Universidade de Salamanca, em 12 de outubro de 1936 – no início da Guerra Civil Espanhola. Com algumas pequenas divergências de acordo com as fontes historiográficas que se tome, o que se passou foi mais ou menos o seguinte: em um evento dedicado ao Dia da Raça, sucediam-se discursos flamejantes de extremo nacionalismo, que clamavam por uma Espanha “una, grande e livre” e contra tudo o que julgavam ser antiespanhol – bascos, catalães, marxistas e judeus –, em um clima de exaltação à morte e um convite à intolerância elevada às últimas consequências.

Reitor da universidade, o poeta, romancista e filósofo dom Miguel de Unamuno y Jugo levantou-se e, indignado, reagiu: “Às vezes, ficar calado é mentir”. Em seguida, declarou:, “Este [a universidade] é o templo da inteligência e eu sou seu sumo-sacerdote”. Em seguida, o pensador fez um pronunciamento corajoso de improviso em defesa da democracia ante a ditadura, das luzes ante o obscurantismo, e da civilização ante a barbárie. Mencionou o general José Millan-Astray, sanguinário fundador da Legião Espanhola e tido como um facínora até por seus pares, que fora alçado à condição de chefe da propaganda da extrema-direita. “Vencer não é convencer. E não pode convencer o ódio, que não dá lugar à compaixão”, disse o reitor.

Enquanto Unamuno se manifestava, marcando território contra o fascismo, Millán-Astray tentava interrompê-lo. O Glorioso Mutilado – como era conhecido o militar em razão de ter perdido o braço esquerdo e o olho direito, em batalhas na África – gritava, de seu assento no auditório: “Viva a morte! Abaixo a inteligência! Viva a morte!”, entre raivoso e cínico. Emblemático, não?

Não sei vocês, mas parece que podemos topar a todo instante em reencarnações verde-amarelas de Millán-Astray por aí, como batessem orgulhosamente no peito, ao ostentar a própria ignorância. Não me surpreenderia se, amanhã ou depois, víssemos o próprio Bolsonaro vociferando “Viva a morte!”, ao ser questionado por jornalistas. Talvez, de certo modo, o lema caísse coerente ao modo como o mandatário vem sabotando o país, com um rastro de quase centenas de milhares de cadáveres. Não tenham dúvidas: além de inepto, asqueroso e vil, o presidente também é, sim, um genocida.


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