Sobre rezas e ervas

A casinha era de alvenaria, mas muito simplória, com janelas um tanto carcomidas pela ferrugem e paredes descascando de tal modo que era impossível lhe determinar de que cor, originalmente, eram. Apesar da humildade inconteste do imóvel, havia ali uma aura de templo. Não pela aparência, mas para o que nos representava. Era para lá que os pais nos levavam, quando nós, as crianças, éramos acometidos de males que não soavam como tão urgentes a ponto de demandar médico. Contornava-se a casa por um corredor à esquerda e se chegava aos fundos, onde, sob um teto de zinco, recebíamos os cuidados de Don’Ana, a benzedeira da vila.

Com um misto de fascínio, medo e respeito, eu a via surgir pela porta dos fundos, miúda, de cabelos cor de cinza e muito curtos, e que vinha com um sorriso resplandecente a contrastar com as cores sóbrias do vestidinho que sempre usava. O ritual dependia de o quê o paciente padecia: quebrante, susto, vento-virado, machucadura, encosto ou cobreiro. Em regra, Don’Ana nos benzia com galhinhos de arruda, enquanto murmurava rezas ininteligíveis, como se concentrasse em si toda a fé do mundo. Por fim, dava-nos para beber uma infusão secreta (“uma água suja”, pensava eu), enquanto nos lembrava: “Só encontra a cura quem acredita”. No fim das contas, a gente “sarava” do que quer que fosse – não sei se por acaso, por fé ou pelos dons da velhinha.

A última vez que visitei benzedeiras foi no finzinho de 2014. Não as procurei por precisar de seus préstimos, mas para ouvi-las para uma reportagem. Quando chegamos à casa de uma delas, Dona Geni atendia, então, um operário que a procurara por estar entrevado por uma dor no ombro. Enquanto vociferava sua oração, a senhorinha cosia um retalho de pano, com os olhos fixos em um prato com água fervente posto à pia e sobre o qual jazia uma tampa de metal. Conforme a reza avançava, a água borbulhava, fazendo trepidar a vasilha. “Se fez bolha, é porque tem espírito ruim, que tá saindo”, anunciou a benzedeira, com feição séria de feiticeira, escorada sobre sua bengala de madeira.

Enquanto registrava cena, o fotógrafo Brunno Covello, que me acompanhava na pauta, suspirou: “Meu, de repente, bateu um calorão!”. De seu lugar, Dona Geni explicou com a maior naturalidade: “É que você tá no caminho da porta, que é por onde os espíritos ruins tão indo embora”. Apesar de ser mais ateu que um pedaço de madeira, até o Covello, naquele instante, se arrepiou. Por fim, o bom retratista acabou ganhando uma benzida para cobreiro (a saber, uma irritação na pele), mas que não lhe surtiu efeito. Ah, homem de pouca fé!

Na mesma empreitada, uns quarteirões adiante, encontramos outra rezadeira, em um casebre à beira de um córrego, nos recônditos da CIC. Dona Dorva era uma senhorinha atarracada e de pouca prosa, que já vinha cansada pelas décadas através das quais vinha exercendo o que chamava de sua missão: interceder pela cura de quem quer que lhe procurasse, sem pedir nada em troca. Sonhava, então, “passar o dom” para sua neta. Coisa de um ano depois da publicação da reportagem, recebi um e-mail: Dona Dorva havia morrido. Ainda hoje me pergunto se a neta dela se interessou em dar continuidade ao nobre ofício da avó. Ainda hoje recebo mensagens, clamando pelo contato das rezadeiras (o que não tenho, registre-se).

Para além do aspecto sobrenatural (ou divino) da coisa, tenho pra mim que a essência do fazer dessas mulheres está correlacionada à tradição segundo a qual a cura para os nossos males está disponível na natureza – e como se quisesse reforçar de onde viemos. Quando eu era moleque, os remédios estavam logo ali, no quintal. Para dor de barriga, chá de hortelã. Para dormir, camomila. As avós sempre tinham uma receita milagrosa, que faziam crer que losna, carqueja, boldo, cidreira, capim-limão e afins eram ingredientes cotidianos. Tudo colhido à mão e na hora. Nada dessas ervas vendidas em supermercados, que vêm em saquinhos insípidos. Uns anos atrás, vi que essa cultura ainda se mantém vívida na Bolívia, pelas mãos das cholas que comungam em sagrada relação com a Mãe Terra (Pacha Mama, em quéchua).

Lembrei-me disso tudo, filosofando em vão numa dessas noites de insônia. Pois é. Basta que eu encoste a cabeça no travesseiro para que o sono se evapore. Só durante a manhã seguinte é que Morpheus dá as caras, fazendo me pesarem as pálpebras, de tal modo que nem café dá jeito. Tenho pra mim que é quebrante. Vá saber. Sem uma benzedeira, não há como fechar diagnóstico e, pior, não há reza para restituir meu sono de beleza. Também já não tenho um quintal como o da infância, que me caía como panaceia. Por sorte, paliativamente, conheci o mulungu, uma planta medicinal que tem me garantido ao menos umas horas de bom repouso. É desses comprados em casas de produtos naturais, mas fazer o quê? É o que temos. Mas que uma benzidinha cairia bem, isso cairia.

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