Presentes passados

O primeiro presente que dei à minha primeira namorada foi uma edição de bolso de Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada, do Neruda. Eu já não era nenhum menino, porém nunca fui bom para essas bossas, de modo que tentei fingir naturalidade. Escrevi uma dedicatória curta, mas certeira, e entreguei-lhe o exemplar embrulhado em papel listrado e sóbrio, procurando não fazer muita cerimônia. Quando ela abriu o mimo, seus olhos se alumiaram, como se tivesse ouro nas mãos. “Pimba! Acertei”, pensei comigo. Nos dias seguintes, no entanto, minha garota não mencionou os versos, fazendo com que eu me corroesse de curiosidade. Recorri à melhor amiga dela. “E aí, o que ela achou? Ela comentou alguma coisa?”, perguntei. “Ela adorou. Já leu, mas… não entendeu nada”, respondeu.

Até hoje, quando se lembra da passagem, um de meus amigos faz troça. “Eu adorei, mas não entendi nada”, diz, rachando-se de rir. Apesar de soar um tanto nonsense, o episódio sempre me põe reflexivo. É que isso, de dar presentes, sempre me foi algo penoso – não pela grana que sempre se gasta, é claro, mas pelo processo em si. Pode soar contraditório, mas vejo um certo egocentrismo em quem dá o presente. É que este sempre vai escolher o regalo de acordo com a visão que tem da pessoa a ser presenteada, não raramente tentando encaixá-la em suas perspectivas e modelos. Quem sabe, uma tentativa de moldar o outro, ainda que por um momento e mesmo que por trás de uma “boa intenção”. Não foi o que eu fiz, ao brindar minha namoradinha com um de meus poetas prediletos de então? Talvez seja algo um tanto natural, mas bote reparo: no fim das contas, os presentes dizem mais sobre quem os dá do que sobre quem os recebem. 

Ainda assim, por mais insignificantes que sejam, os presentes atravessam os anos como símbolos de determinada relação, em um dado recorte de tempo e de espaço. Valem pelo que representavam naquele contexto determinado. Talvez por isso, há quem se apegue tanto a eles. Talvez por isso, alguns achem por bem atirá-los ao lixo ao fim de cada namoro ou casamento, como se os objetos pudessem levar consigo as lembranças que personificam. No mais das vezes, costumo guardá-los. Tenho até hoje, por exemplo, o primeiro presente que ganhei da menina do Neruda. Trata-se de uma camisa da seleção. Mais de quinze anos depois, a amarelinha ainda está bem conservada e só não a uso nas minhas corridas matinais porque receio ser confundido com um idiota, desses que mugem pelo voto impresso e pelo fechamento do STF.

Até entendo, entretanto, quem se desfaz definitivamente de antigos presentes. Fico embevecido, por exemplo, quando compro um livro em algum sebo e encontro uma dedicatória qualquer. “Arnaldo, que nosso amor resista a tudo e atravesse a tudo, como palavras em uma página de livro. Amanda”,  consta na folha de rosto do meu exemplar de Do Amor e Outros Demônios. É quase uma lápide de um amor que se foi. O que terá feito com que a história de Arnaldo e Amanda naufragasse? Em que momento perceberam que amores não resistem nem atravessam a tudo? Quando Arnaldo se deu conta de que já não suportava mais olhar para o exemplar e anunciou, para si: “Vou vender essa merda para um sebo!”. Teria se desfeito da edição por tristeza ou mais por ódio? Jamais saberemos.

Apesar de compreender o anônimo Arnaldo e de me solidarizar com ele, eu seria capaz, se tivesse popularidade para tal, de lançar uma campanha para sensibilizar as pessoas a não se desfazerem dos presentes passados. Sou ruim com slogans, mas penso em algo clichê, como “Não jogue sua história no lixo”. Ok, o mote não ficou dos melhores e pode ser melhorado com a ajuda de profissionais, mas estou convicto da necessidade e da viabilidade da iniciativa. De pronto, alguns – talvez a maioria – podem até torcer o nariz, afinal não é nada fácil manter por perto recordações de amores fracassados, sobretudo quando as feridas ainda estão em carne viva. Talvez, em um primeiro momento, deitar fora tudo quanto for lembrança seja o ímpeto mais provável. Mas quando se supera esse pico, tudo faz sentido. Há que resistir estoicamente.

Uns anos atrás, eu, mesmo, meti no fundo de uma gaveta o livro que tinha ganhado de uma ex, que havia recém-partido. Olhar a edição na estante, ainda que de relance, me fazia lembrar do curto período (bastante comum aos casais improváveis) em que vivemos um êxtase comum de ridícula felicidade e essas memórias me punham a pensar na vida que poderia ter sido e não foi. Tempos depois, quando vasculhava papéis quaisquer e encontrei, por acaso, o livro no local em que eu o havia sepultado, as lembranças que ele evocava já não me aperreavam mais. Até sorri. Com dignidade, devolvi-o à estante, certo de que certas coisas doem pelo tempo e intensidade exatos que precisam doer, e pronto.

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima