Narcisos (ou Egorretrato)

Tenho pra mim que o tempo se faz sentir aos saltos. Em uma analogia canhestra e piegas, envelhecer seria como galgar, um a um e bem aos poucos, os degraus de uma escada sem fim. Após permanecer certo tempo em um patamar, de repente você se olha no espelho e (pimba!) tem a sensação de que sua existência avançou algumas casas, assim, de uma hora para outra. É um cabelo branco aqui, uma marca de expressão que não havia ali, um olhar lasso acolá. É a vida. Paciência. Mas dar-se conta de que se é precário, provisório e perecível deixa, invariavelmente, um gosto amargo e resignado na boca, como quem diz: “Olha a finitude logo ali, depois daquela curva”. Nos tempos de universidade, tive um professor que cunhou uma expressão que caía quase como um aforismo que sintetizava a condição humana: “Somos todos um saco de merda!”.

Eu me lembrava dessas miudezas em uma dessas noites de insônia. Pela manhã, eu tinha acordado esquisito, como se a idade tivesse dado um desses saltos vis. Passei o dia qual tivesse um não-sei-o-quê atravessado na garganta. Às vezes, são curiosas as percepções que temos de nós mesmos. Quando a madrugada se avizinhou, coloquei dois dedos generosos de uísque no copo e me pus a bebericar, assistindo à vida pela janela. Não havia muito o que ver, é verdade. Poucas cenas banais: o vigia vistoriando os carros na garagem, um bêbado mijando num poste da rua, o vizinho do primeiro andar enfadado ante o telejornal de fim de noite… Do meu canto, bocejei com enfastio.

Aos poucos, as luzes do bloco defronte foram se apagando. Restou-me uma única acesa, em um cômodo do sétimo andar. Apurei a visão. Pela janela, era possível ver uma jovem, que zanzava de cá para lá. De quando em quando, estancava numa pose – talvez em frente a um espelho. Só então me dei conta de que ela portava um celular. Logo, ela se achegou ao beiral, provavelmente procurando iluminação mais adequada, e experimentou umas quantas selfies, ora sorrindo, ora convertendo os lábios num biquinho. Por fim, virou o rosto um pouco para a direita, tentando um ar mais blasé. Finda a curta sessão, correu o indicador pela tela, como se conferisse o resultado dos cliques.

Por um instante – cinco minutos, se tanto – a garota saiu do meu campo de visão. Era loira, cabelos escorridos na altura dos ombros e devia ter, sei lá, uns dezenove ou vinte anos. Por ali. Logo, ela reapareceu ao proscênio, mas já trajava outro figurino: um blusão de moletom rosa e um boné branco. Com o celular em mãos, arriscou outra série de autorretratos, nas mesmas poses sequenciais de antes. Ainda perto da janela, ela tirou a blusa num movimento rápido e ajeitou a camisete decotada que vestia por baixo, atou os cabelos num rabo de cavalo e voltou a se fotografar, aparentemente se esforçando por parecer sensual – embora à distância e fora de contexto parecesse um tanto ridícula.

Após a quarta troca de look, a jovem desfez lentamente o rabo de cavalo, ocultando-se novamente. Quando reapareceu, seus gestos já eram bem menos decididos e ela já não parecia ostentar um viço que, havia pouco, se esforçara por parecer espontâneo. Já trajava, então, um camisetão largo – provavelmente seu pijama – e mantinha um semblante inexpressivo. Apoiada ao beiral, ainda manuseou o celular por alguns minutos, talvez editando e postando as melhores fotos recém-tiradas em alguma rede social. Vá saber. Antes de voltar para dentro, pareceu suspirar um desalento. Ato contínuo, ela saiu de cena e a luz se apagou. Matei meu uísque ponderando sobre imagens. No fundo, estamos todos tentando capturar a juventude. Aparências, aparências, aparências. Quanta solidão cabe em uma selfie?

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