Liberal, pero no mucho

Assim que entrei no carro do motorista de aplicativo, foi impossível não notar os indefectíveis versos do clássico de José Augusto. O refrão desaguou ainda antes de a corrida começar e, enquanto me acomodava no banco traseiro, inventei de fazer graça e cantei junto, arremedando os trejeitos do cantor romântico de antanho: “Agora aguenta coração/ Já que inventou esta paixão…”. Satisfeito, o chofer – um velho de cavanhaque branco e com pinta de bicheiro – abriu um sorriso largo. “Meu pen-drive tem feito sucesso”, disse, antes de começar uma manjada lenga-lenga calcada em preconceito musical, como se as gerações anteriores fossem melhores e mais educadas por terem ouvido, por exemplo, Ritchie e Fagner – que vinham logo a seguir, na playlist do figura.

Só então percebi que meu gracejo havia aberto uma porta perigosa. (Há quem diga que, assim como os taxistas, certos condutores de aplicativo têm carteirinha de reaça). Fechei-me em copas, mas a Mariana – que, por ter bom coração, é incapaz de cometer um ato de grosseria – deu ouvidos ao nosso interlocutor, que descambou a conversa para a política. Um tanto envergonhado, acabou admitindo que votara no Capitão, mas justificou, argumentando que só o fez “pra tirar aquela turma”, porque o único candidato “que prestava” (o tal do “Novo”) não tinha chances. Em seguida, atacou as cotas raciais, mas vislumbrou um Brasil ideal em que as escolas fossem todas (todas!) estatizadas.

Do meu canto, pensei em protestar: “Pô, amigo! Ou você vota no Amoêdo ou você defende a estatização do que quer que seja. Os dois não dá!”. Talvez seja reflexo da idade, mas tenho ponderado que não vale a pena bater palmas pra maluco dançar, de modo que permaneci quieto. Em seguida, voltou sua metralhadora de asneiras ao aspecto moral e só faltou usar a expressão “ditadura gayzista”. Resisti ao suplício com estoicismo e só não me atirei do carro em movimento, porque queria chegar o quanto antes ao botequim. Fui obrigado a tomar umas cervejas a mais para me refazer da exposição à ladainha do velho – e coloco na conta dele os eventuais excessos que eu tenha cometido naquela noite.

A linha de raciocínio do chofer de aplicativo, contudo me parece longe de ser exceção e talvez até traduza bem a essência do “Liberalismo à brasileira”, resumido pelo mote “liberal na economia, conservador nos costumes”. Soa como um pastiche paradoxal: um Estado enxuto, que interfere minimamente no mercado, que passa a bola da regulação e dos serviços à iniciativa privada, mas que tem tempo e disposição para se ocupar dos orifícios alheios. E, neste ponto, justiça seja feita: como este governo gosta de cuidar dos cus de seus concidadãos (desculpem-me o palavrão)! Episódios não faltam. Não vou me dar ao trabalho de enumerar – e você, aliás, já deve estar de saco cheio.

Às vezes, esse salsicheiro danado chega a dar um nó nas ideias do caboclo. Nesta semana, mesmo, eu esperava o ônibus, que estava um tanto atrasado, quando um cidadão de bem começou a discursar contra a (má) qualidade do transporte público. Com dedo em riste, bradava que o mais lógico seria “privatizar tudo, que coisa pública não presta mesmo”. “É tudo um antro de corrupção”, esbravejou. Desta vez, no entanto, arrisquei uma tímida intervenção: “Olhe, senhor… já é privatizado. Quem toca o sistema de ônibus são empresas privadas”. Pra quê? O homem vociferou que essa era só a minha opinião e fim de papo. Quando o coletivo, enfim, aportou na estação, o sujeito entrou pisando duro, não sem antes me lançar um desaforo: “Comunista!”.

Fosse assim tão bom, não haveria uma onda considerável de reestatizações, conforme assinalou reportagem do UOL, publicada na semana passada. Segundo estudo do holandês Transnational Institute (TNI) – que embasa a matéria – , desde o ano 2000, pelo menos 884 serviços que haviam sido repassados à iniciativa privada voltaram a ser estatizados, em síntese, porque priorizavam apenas o lucro e, em razão disso, estavam “caros e ruins”. “As reestatizações aconteceram com destaque em países centrais do capitalismo, como EUA e Alemanha”, assinala o texto, da repórter Juliana Elias.

Você até pode fazer coro ao camarada do ônibus, ali de trás, e dizer: “Ah, mas há corrupção generalizada no serviço público”. Se a preocupação fosse bem essa, penso que deveria haver um punhado de gente se descabelando em praça pública, dando faniquito, por exemplo, pelos assassinatos cometidos de forma calculada com frieza pela Vale (privatizada na onda liberal do FHC, registre-se) e pelo esquema arraigado de desvios nas concessionárias de rodovias que operam aqui na província. Cadê?

Enfim… lembrei-me de um meme que circulou esses tempos atrás e que virou até fantasia de carnaval país afora. Em primeiro plano, aparece um homem vestido socialmente, com gravata borboleta e tudo. No entanto, o espelho postado na parede logo atrás denuncia que o personagem traz toda a retaguarda descoberta – e revela que usa lingerie e cinta-liga. A legenda: “Conservador nos costumes… Liberal na economia”. Eu ri, mas estou escaldado com essa prosa. A partir de agora, por via das dúvidas, sempre que pegar Uber, só falarei sobre futebol.

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