Gabo, minhas avós e eu

“Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados.” Toda vez que leio esta primeira sentença de O Amor nos Tempos de Cólera, solto, quase que involuntariamente, um palavrão. É tiro e queda. Não que eu queira ofender a memória de García Márquez. Muito pelo contrário. Trata-se de estupefação. É que, na minha modesta avaliação, eis aí o mais belo e matador início de livro já escrito em qualquer que seja o idioma que se ponha à mesa. Não sei a você, mas essa breve sucessão de imagens tão sutis me fisgaram de imediato e de tal forma que tive ímpetos de ler o romance todo, de uma única sentada. Só não o fiz porque os bons livros, convém degustá-los sem pressa, com certa avareza até, como quem come um biscoito fino aos poucos, cuidando para que não chegue logo ao fim. É sabido que deixarão um gosto bom, mas também um inevitável vazio.

Talvez poucos reconheçam tanto a importância de um bom começo quanto quem vive do ofício de escrever. Como é sofrido enfrentar a página em branco, ali, feito esfinge – “Decifra-me ou te devoro” –, enquanto se luta contra a torrente de palavras que pululam na cachola, insubordinadas, negando-se a se organizarem na ordem que devem ou que, ao menos, façam mínimo sentido. Carece de comprovação científica, mas tenho pra mim que mais de 98% dos colegas jornalistas sofram desesperadamente com o primeiro parágrafo. No meu caso, a briga dura pra mais de meia hora. Às vezes, só ganho a parada depois de um café (ou trago de cachaça – depende do horário) ou de uma volta nos arrabaldes de casa, ruminando fiapos de ideia.

García Márquez, como sabemos, enquanto escrevia seus primeiros contos, também se fez forjar em redações de jornal. Um de seus romances, Do Amor e Outros Demônios, aliás, foi inspirado quando exercia o posto de repórter e se viu escalado para uma pauta corriqueira: esvaziavam-se as criptas do convento de Santa Clara. A “notícia”, no entanto, não estava nas tumbas principais, de um vice-rei e bispos, mas por detrás de uma lápide adjacente e insuspeita, onde jazia “os ossinhos miúdos e dispersos” de María de Todos los Ángeles e sua “cabeleira esplêndida”, que media vinte e dois metros e onze centímetros. O achado não impressionou o então jovem repórter, porque sua avó lhe contara a lenda de “uma marquesinha cuja cabeleira se arrastava como vestido de noiva” e que viera a morrer de raiva. O romance começa assim:

“Um cachorro cinzento com uma estrela na testa irrompeu pelos becos do mercado no primeiro domingo de dezembro, revirou mesas de frituras, derrubou barraquinhas de índios e toldos de loterias e, de passagem, mordeu quatro pessoas que se atravessaram no seu caminho. Três eram escravos negros. A outra foi Sierva María de Todos los Ángeles, filha única do Marques de Casalduero, que fora com uma empregada mulata para comprar uma fieira de guizos para sua festa de doze anos”. Nada mal, não é mesmo?

Há quem prefira, no entanto, o alvorecer de Cem Anos de Solidão:  “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. Paulada. Por que executavam o tal Buendía? E essa história do gelo? Quem abdicaria da leitura depois dessa? Por isso, escolher entre as obras do colombiano é tarefa tão controversa quanto se decidir entre Beatles e Stones, mas, apesar de reconhecer a fluidez do início de Cem Anos, fico com as figuras sublimes de O Amor nos Tempos do Cólera. Mas não hei de torcer o nariz se você preferir a história que se dá na mítica Macondo. Fique à vontade.

Consta, aliás, que García Márquez tenha pegado gosto pelas letras a partir da leitura de Kafka (não confundir com kafta, a exemplo de certos ministros). Coincidência ou não, Metamorfose, uma das obras mais famosas do tcheco, tem um início que considero dos mais infalíveis: “Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto”. Estará aí a origem dos princípios arrebatadores do grande latino? Eu apostaria que sim, mas quem há de saber? Quanto aos desfechos, é melhor nem enveredar a prosa pra esse lado, senão a crônica não chega ao fim. Mas cumpre observar: se o caboclo se meter a soltar um desaforo a cada arremate exemplar de García Márquez, aí, sim, hão de faltar palavrões.

De minha parte, sempre que leio uma história bem contada, lembro-me da vó Dita (que, na verdade, era minha bisavó). Não, a velhinha não era dada a escrever. Trabalhara uma vida inteira como lavadeira e aprendera a ler sozinha, sabe-se Deus como, decifrando por seus próprios meios páginas de jornais que amiúde lhe caíam nas mãos. Em contrapartida, era toda tradição oral e contava causos como ninguém. Quando acendia seu cigarrinho de palha e desatava a falar, com os olhinhos semicerrados e com o coque bem atado no topo da cabeça, a velha magrinha prendia a atenção de todo e qualquer ouvinte, fazendo crer que conhecíamos as pessoas que povoavam suas narrações. Dominava não só a arte de abrir com maestria uma passagem qualquer, mas também a conduzia e a finalizava com o mesmo encanto.

Ainda moleque, eu ficava boquiaberto, ouvindo causo atrás de causo, quase que vendo as cenas que a bisavó descrevia. O dom parece ter passado para vó Inês, embora esta tivesse estilo um tanto diverso: sacava sempre histórias permeadas de personagens fantásticos, lendas improváveis e de assombrações de fazer perder o sono. Sem, é claro, contar a ninguém, eu ponderava que, quiça um dia, também poderia vir eu a desfiar contos como nhá Dita ou dona Inês. Sem carisma nem lábia, no entanto, não houve remédio, senão me resignar e, em seguida, desviar meus intentos para a escrita – atividade na qual, como você pode notar, continuo a teimar. Em silêncio, torço para que um dia consiga ter a mesma graça das avós, com a benção de García Márquez. Amém.

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