Exageros da boa mesa

Ainda há pouco, eu estava preparando um peito de frango temperado com lemon pepper (coisa leve, sem segredo algum) e, enquanto mexia a panela de aço inox, olhava em retrospecto e cheio de culpa para o último feriadão, em que chafurdei no pecado capital mais irresistível: o da gula. Não tem jeito. Toda vez que vou pra casa (eu já não moro com meus pais há vinte anos, mas continuo me referindo ao interior como “casa”), volto de lá com a sensação de estar inchado feito um baiacu. Pudera. Do primeiro café da manhã ao último jantar, sou posto à prova com um sem fim de delícias gastronômicas tão saborosas quanto calóricas. Feijão de mãe, feijoada, bolo de cenoura… chega a ser covardia. Às vezes, eu até tento resistir, mas aí vêm os protestos da parentada. “Ora, deixe de ser bobo. Deixe pra se regular quando voltar pra lá.”

As tradições da boa mesa e dos faustosos exageros não se consolidaram no meu clã de uma hora para outra. Vêm de gerações. Minhas avós, por exemplo, já eram cozinheiras de mão-cheia e senhoras de uma criatividade de fazer inveja a um master chef – até por terem se virado nos trinta para dar de comer à penca de filhos que cada qual teve, em época enxuta e de recursos minguados. Talvez pela família numerosa também tenham se acostumado a cozinhar para um batalhão, o que deve ter se tornado hábito. Vai ver até errariam o tempero ou deixariam o arroz empapar se fossem preparar uma refeição porcionada só para duas ou três pessoas. Tudo era em dimensões colossais.

Na casa da vó Filhinha, por exemplo, a mesona ficava posta o dia todo. Assim que a gente chegava, ela nos recebia com um sorriso de satisfação e nos arrastava até a cozinha, onde sentia gosto em nos ver comer. Era a rainha do exagero. Café até a borda do copo americano, toletes de pães de casa e queijos com goiabada em fatias que mal cabiam na boca. No almoço, então, servia pratadas de gente grande até para a criançada. Se o apetite não fazia jus às expectativas da vó, a velhinha fazia uma típica chantagem emocional: “Coma, senão a vó fica triste”. Até os elogios pareciam girar em torno da comida. É que dona Filhinha admirava formas mais rechonchudas. Coitada da minha irmã que, em plena pré-adolescência, tinha que ouvir “Tá bonita, fia! Tá gorda!”, quando o padrão magérrimo já havia se imposto à meninada.

A vó Inês já tinha sido cozinheira profissional e era dona um repertório que parecia não ter fim. Algumas das receitas eram anotadas num caderninho escrito à mão. Outros pratos tinham autoria atribuída a ela, como o “Puta que pariu”, que consistia em um arroz com carne de porco e legumes, tudo preparado no mesmo panelão. Era de dar água na boca. Mas talvez as iguarias que mais estejam impregnadas na minha memória afetiva sejam o arroz-doce (sacanagem… salivei só de escrever) e a feijoada completa. Já na década passada, enquanto mexia a panela da feijuca, a vó bebericava a caipirinha que eu lhe preparava sob medida. Quando eu demorava, ela me espetava umas leves indiretas: “Ué, não tem a pinguinha hoje?”.

Minhas avós se foram, mas parecem ter passado o bastão da boa mão e do exagero. Minha mãe ficou com o talento para doces. Faz bolos como ninguém, dos mais simplórios aos mais bem-acabados, desses com recheios e cremes. É difícil escolher, mas acho que meus preferidos são o de fubá e o de cenoura – com cobertura de chocolate quebradiço. Eles têm gosto de infância. O arroz-doce, por sua vez, fica parecidíssimo com que a vó Inês fazia, bem molhadinho e com canela em pó na medida certa. A diferença é que ou a mãe não gosta dos próprios quitutes ou faz charme, porque sempre aponta um defeito – que nunca corresponde com a realidade. “Ah, ficou muito doce”, ou então, “Esse bolo tá seco demais, credo!”. Eu nem espero esfriar e como de lamber os dedos. Minha prima, a Mamá, está indo para o mesmo lado, mas com um toque de modernidade. E tome brownies, cookies e afins.

Minha irmã ficou com o departamento de pratos salgados. É um espetáculo. Tempos atrás, ensinei-a a fazer risoto e, na vez seguinte, ela já havia me botado no chinelo, como se eu fosse um reles fazedor de miojo. Tem uma mão pra temperar, que só vendo e provando. Agora, é ela quem conduz a feijoada, cujo processo começa bem cedinho, cortando os ingredientes com minúcias. Recolhi-me aos papéis que cumpro com louvor: de prestar apoio moral e de fornecer caipirinha – porque ninguém merece enfrentar o fogão sem um trago pra rebater. No último feriado, bati três pratadas, que me levaram à lona. Em plena tarde, dormi num colchão posto no quintal e nem a algazarra da criançada foi capaz de me acordar.

Agora, cá estou eu, sofrendo as consequências da orgia gastronômica e com a plena convicção de que não me sobrou sequer parte dos dotes gastronômicos das avós. Paciência. Resta-me, então, me preparar psicologicamente para mais uma temporada à base do trivial, até que seja tempo de voltar à província e revisitar todos esses sabores e excessos que estão, indissociavelmente, ligados ao clã. Já não vejo a hora. Enquanto isso, no entanto, farei o que é possível, de acordo com a tradição das avós: vou ali, preparar um chá de boldo, que é para ajudar na digestão. Até!

Sobre o/a autor/a

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

O Plural se reserva o direito de não publicar comentários de baixo calão, que agridam a honra das pessoas ou que não respeitem níveis mínimos de civilidade. Os comentários são moderados por pessoas e não são publicados imediatamente.

Rolar para cima