Coisa de criança

Assim que desembarquei no terminal, o céu desatou a despejar chuva em tamanho volume e de forma tão ininterrupta, que cheguei a pensar que estaria diante de uma segunda edição do dilúvio. Ainda que tivesse em mãos o velho guarda-chuva, ele de pouco me valeria ante o aguaceiro inclemente que não deixava indício de trégua. Resignei-me, não sem uma ponta de mau humor. Ao lado, um meninote – devia ter uns sete anos, se muito – passou e me espiar com curiosidade, de mãos dadas com a mãe. Assim que nossos olhos se encontraram, mostrei-lhe a língua com ar de troça, ao que ele devolveu escancarando uma careta. Rimos os dois. Foi o garotinho quem puxou conversa:

– O que é que você faz, moço?

– Eu escrevo.

– Escreve? O quê?

– Sobre tudo… e sobre o nada. Às vezes, coisas que interessam às pessoas. Outras vezes, o que eu escrevo não interessa a ninguém.

– Que engraçado! E o que você vai ser quando for criança?

Enquanto eu ponderava sobre a pergunta, suspirei em reticências, sem saber o que dizer. Nisso, a mãe do meu pequeno interlocutor o puxou pelo braço, interrompendo a nossa prosa: “Deixe o moço em paz, Juan!”, disse, já saindo feito um tiro em direção a um ônibus que acabava de estacionar em um dos pontos adiante. Lá se foram os dois a bordo do coletivo, deixando-me com o dilema atirado pelo menino. Mas que diabos! Dei de ombros à chuvarada e saí com os pingos grossos a ensopar minha roupa, à medida que eu cismava com aquilo. Cheguei em casa encharcado como se tivesse atravessado o oceano a nado… e completamente sem resposta.

Agora, revisitando o episódio, tudo me parece mais claro. Ora, se eu voltasse a ser criança eu seria Manoel de Barros. Estalo os dedos, corro à estante, alcanço meu exemplar de “Menino do Mato” – que por muito tempo ficou à cabeceira – e o abro aleatoriamente. “Eu queria pegar na semente da palavra”. Está vendo! Tento outra: “Eu vivo do meu relento”. E ainda: “Visão é um recurso da imaginação para dar às palavras novas liberdades?” ou “A gente não gostava de explicar as imagens porque explicar afasta as falas da imaginação”. Ora, era óbvio. O velho poeta pantaneiro evoluiu tanto em sua existência que voltou a sentir como um infante. Eis aí!

Essas carraspanas têm o poder de nos tirar subitamente do piloto-automático. É como se, de repente, nos mostrassem uma dimensão a que desaprendemos a ver, por termos puro condicionamento. Talvez bastem olhos e ouvidos atentos e um mínimo contato com crianças para reabrirmos esse portal. É aí que se dá peso exato aos acontecimentos e, assim, a vida flui com mais leveza. Creio que seja universal, porque tenho visto, deliciado, esses despertares catalisados pelos pequenos, por meio de passagens tornadas públicas em redes sociais de mães e pais do meu círculo. (Estão aí as peripécias dos “2 piás” da Dani e as “Claricices” da Joana, para servirem de exemplo). Você mesmo, enquanto me lê, deve estar se lembrando de uma ou outra peça da criançada do seu convívio.

No meu caso, o que me transformou – para melhor, creio – foi o nascimento da Julia, minha sobrinha. Na condição de tio e padrinho, tenho a prerrogativa – quiçá o dever – de estragá-la. Assim, foi por minha obra que, pela primeira vez, a Juju tomou chuva, entrou no rio, se pintou de palhaço e pegou um violão. Mas, por mais piegas e clichezento que pareça, sou eu quem tenho aprendido com ela a contato, ao longo desses sete anos e meio. É que ela tem uma sensibilidade e um coração tão imensos, proporcionais ao sorriso que me põe no rosto quanto está por perto. Em silêncio, penso: “Putaqueopariu, a vida é boa!”.

Sempre que me visita, a Ju se encanta com as minhas Olivettis, como se as visse pela primeira vez. “Põe um folha?”, pede e, em seguida, datilografa cartas, com as quais me presenteia, junto com desenhos de toda sorte. Também é dada a inventar palavras, como “deslembrar”, que, conforme ela argumenta, tem significado mais exato do que “esquecer”. Gosto de lhe perguntar com o que sonhou e de saber o que pensa sobre as mínimas coisas. Quando tinha quatro anos, por exemplo, veio com uma boa: diferentemente das amiguinhas, não queria ser mãe. “É que filho dá muito trabalho e eu quero ser professora”, justificou. Dia desses, deu uma bronca no meu pai, que gozava dos modos espalhafatosos com que se vestia um funkeiro na tevê. “Você é ele, vovô? Então deixa ele”, tascou.

Uma das grandes lições que as Jujuzices mantêm vívidas é que a vida urge e, por conseguinte, há que vivê-la, dia após dia. Sem esquecer de si mesmo. Sem esquecer de quem se é. Quando a tarde já se vai pela metade e ela considera que ainda não desfrutou em sua plenitude, reivindica seu direito inalienável à felicidade, com intensidade máxima: “Eu não tô me divertindo! Já é tarde! Eu preciso me divertir!”, diz, exasperada, como quem carece de cumprir uma obrigação ou como se fosse uma adepta de primeira hora à filosofia do Carpe Diem. E lá vamos nós, inventar alguma brincadeira. À noite, Julia luta às últimas forças para não se entregar ao sono e aproveitar o dia até o último quinhão. É ela quem me deixa claro, por seu exemplo, que a vida é uma sequência de hojes. Coisa de criança…

(De minha parte, já me vou. As horas já se avançam e ainda não me diverti.)

https://www.plural.jor.br/a-carne-mais-barata/

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