A proliferação dos bichos

Assim que dobrei a esquina, o homem já estava li, arqueado, com um dos braços metidos dentro da lixeira, vasculhando seu interior. O fazia com movimentos meticulosos, como se não tivesse pressa. Parecia sentir-se invisível, embora estivéssemos no centro da cidade e houvesse turbilhão de pessoas que trafegavam em atropelos típicos de hora do almoço. Dei uma olhadela ao redor e, de fato, era como se ninguém desse por ele. Seu rosto não tinha a mínima expressão, concentrado unicamente naquilo que, então, fazia: fuçar o lixo. Por fim, encontrou algo que lhe chamou a atenção e retirou do cesto com máximo cuidado. A poucos passos dali, pude ver que se tratava de um saco de papel, desses de lanchonete, que aparentemente continha algo pela metade. Um naco de sanduíche ou o pedaço de um salgado, inferi.

Quando pôs os olhos sobre mim, o sujeito estacou, constrangido. Fez menção de esconder o pacote atrás de si, mas abandonou o gesto pela metade, o que deu mais gravidade ao ato. É como se eu o tivesse flagrado cometendo um crime hediondo. “É que eu tenho vergonha de pedir”, justificou, cabisbaixo e com um fiapo de voz que custou a sair. Precipitei-me como a começar conversa, mas ele deu meia-volta e partiu sem olhar para trás, deixando-me com um nó na garganta e a sensação de ter sido inconveniente. Enquanto se afastava, notei que ele devia ter minha idade e que estava distante do estereótipo de quem vive sob as marquises. Tinha o cabelo penteado, barba feita, roupa limpa… Um pouco adiante, ainda enquanto caminhava, desembrulhou o seu achado e deu uma mordida com gosto.

Fincado onde estava e sem reação, senti culpa imediata. Talvez não tanto por ter presenciado a cena, mas por ter acabado de matar um prato de massas e saladas, enquanto o outro, por algum motivo, se via obrigado a comer do lixo. Sem ajuda. Se eu não tivesse ficado pasmado, talvez pudesse ter lhe bancado um prato de comida e, sei lá, aplacado sua necessidade mais urgente. Contudo o absurdo de ver um semelhante se servindo de restos e à luz do dia me tirou completamente a ação. Se pudesse, lhe pediria perdão. Que mundo é esse, puxa vida?

Enquanto ponderava sobre o episódio, lembrei-me dos versos de Manuel Bandeira: “Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos.// Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade.// O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato.// O bicho, meu Deus, era um homem”. O enredo só não era o mesmo que eu acabara de testemunhar, porque o rapaz que vi ainda preservava algo de sua humanidade, talvez pela dignidade que mantinha, apesar de tudo.

Os “bichos”, como os da poesia de Bandeira, no entanto, estão proliferando pelas ruas, para quem quiser notá-los. Alguns cidadãos continuam como se eles não existissem. Mas ainda há quem tenha olhos e coração. Esses dias, mesmo, a colega Isadora Rupp postou um desabafo: conforme sua percepção, o número de “carrinheiros” – aqueles que catam material reciclável – parecia ter aumentando exponencialmente de uns anos pra cá. No caminho entre a casa e o trabalho, tenho constatado o mesmo. Eles estão em todos os cantos, todos os horários.

“A miséria está aí, jogada na nossa cara. E a gente já se acostumou. É automático. Me sinto uma egoísta, idiota. Fico paralisada. Choro na rua voltando pra casa, mas não sei o que fazer para ajudar (além do mínimo). Alguém tem alguma ideia? Pergunto com sinceridade. Temo pelo futuro. São tempos dolorosos demais. Desculpa pelo textão”, escreveu a Isadora.

Vejo, ainda, outro indicativo: o tanto de desvalidos que, por ora, se aproveitam da lotação dos ônibus para pedir aos passageiros um trocado ou para lhes vender o que quer que seja. Se você usa transporte coletivo, também deve ter notado. É raro tomar um biarticulado sem que alguém se apresente com a introdução-padrão – “Desculpe atrapalhar o sossego da viagem de vocês…” – e, em seguida, passe a apregoar balas, cocadas, chaveiros ou algo que o valha. Hoje, mesmo, era um rapaz que passou vendendo gomas, depois que perdeu emprego numa metalúrgica. “Este país está virando um bando de fodidos, cada um, se virando como pode”, observou um velhinho, que ia sentado ao meu lado.

É claro que a epidemia de “bichos” está relacionada a uma sucessão de fatores tão complexos que não caberiam numa crônica, mas não posso deixar de estranhar. Dois anos atrás, nos empurravam a Reforma Trabalhista como uma panaceia que recuperaria o “mercado” e geraria 6 milhões de empregos. As ruas parecem dizer que não houve nem bulha disso. Pelo contrário: a taxa de subutilização da força de trabalho bateu recorde histórico e o desemprego se abate sobre 13,5 milhões de viventes. Agora, nos apontam a Reforma da Previdência como tábua de salvação. Quantos mais estarão revirando o lixo? Não importa. O “mercado” cega para o que quer que não sejam suas próprias demandas. Você poderá fazer o mesmo. Se o urro da fome não vier do seu estômago, você também poderá virar o rosto aos eventuais “bichos” que aparecerem por aí.

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