A poesia em suspenso

Quando dei por mim, ele estava ali, do lado de fora da janela, flutuando no ar, frágil como um sonho bom. Olhou para mim desconfiado e descreveu um movimento elíptico para trás, como se vacilasse. Logo, no entanto, foi adiante. Enfiou o bico fino feito agulha num dos pequenos orifícios do recipiente e sorveu uns quantos goles da solução de água com açúcar que eu tinha preparado pela manhã. Havia quatro dias que eu vinha pendurando o bebedouro – desses, com flores de plástico em cores chamativas – e trocando a água de quando em quando, na expectativa de que as pequenas aves me visitassem. Era quase um experimento, já que moro no segundo piso e não sabia se os bichinhos teriam autonomia para chegar ao patamar do meu apartamento.

Da mesa em que me digladiava com uma reportagem por escrever, girei lentamente a cadeira em noventa graus e fiquei ali, pasmado, contemplando as investidas vivazes e precisas do beija-flor. Pode ser que os sentidos tenham me pregado uma peça, mas creio que ouvi o farfalhar incessantes das asas, que, segundo consta, batem oitenta vezes por segundo. Logo – em um tempo que sou incapaz de precisar –, o visitante deu meia volta e zuniu para outros ares. Ainda fiquei um tanto brincando de fazer metáforas sobre o bichinho e sorri para mim mesmo, porque todas me soaram tão clichês quanto a vida. Algo como “poesia suspensa”. Vexatório, não?

Fato é que a aparição do beija-flor paralisou temporariamente a minha rotina, trazendo uma lufada a um dia até então insosso. Tomei o caderninho de notas e registrei uns apontamentos. Estava disposto a dedicar esta crônica exclusivamente à poesia com a qual uma passagem banal dessas pode nos alumiar. A realidade, no entanto, tratou de se impor, árida e cinzenta, como tem se mostrado. Horas antes, o capitão havia, mais uma vez, reafirmado sua fixação com a morte, publicando decretos que aumentam para seis o número de armas que cada cidadão pode ter, além de afrouxar ainda mais o porte e compra de munições. (Será mera bandeira de campanha? Será lobby da Taurus ou das milícias? Ou, quem sabe, algo que Freud possa explicar? Por que diabos esses “cristãos” são tão alucinados por armas? Vá saber…).

No mesmo instante, o Brasil passava dos 9,8 milhões de casos de Covid-19 e de 238 mil mortos, nessa equação macabra que não para de se desdobrar. Fazendo uma conta de padeiro e de mau gosto, se enfileirássemos os caixões, seria possível dar uma volta em torno da Terra e ainda sobrariam algo em torno de 10 mil quilômetros. Enquanto isso, o paspalho que ostenta a faixa presidencial continua a sabotar a política pública de vacinação, politizando a pandemia e abraçando a morte ao apregoar medicamentos que podem ser ótimos para expurgar vermes e curar malária, mas que são inócuos contra a Covid-19 – agora, a nova aposta, ao que parece, é o “remédio israelense”. (O que esperar de uma família que fez votação para decidir se vacinaria a avó?).

Como sabemos, estamos falando de um sujeito que só funciona no caos. Quem poderia imaginar, não é? Na tétrica reunião ministerial de 22 de abril do ano passado, Bolsonaro manifestou que sonhava em ver toda a população armada. Mesmo com os cadáveres se contando à casa dos mil por dia, nunca o vimos dizer que sonhava em ver todos os brasileiros vacinados. Tenho para mim que os sonhos que uma pessoa cultiva dizem muito sobre sua essência. Se bem que neste caso está mais para pesadelo, com a diferença que este não termina quando você acorda.

É que, não sei você, mas não vejo, no médio prazo, saída desse labirinto nefasto em que nos metemos. Dia desses, minha tia me contou uma: no grupo de WhatsApp formado por professoras da rede pública, uma das membras disse que não tomaria a vacina. O motivo: outra professora tinha garantido que nenhuma vacina eficaz fica pronta em tão curto espaço de tempo. Claro! Como não suspeitamos disso antes? Precisou vir uma professora de geografia do ensino médio, das profundezas de sua sapiência virtual, desmascarar o conchavo internacional entre a OMS e institutos científicos, sabe-se lá com que propósitos. (Contém ironia, é claro). Senhora da razão, ela continuou tomando Ivermectina, conforme orientação do capitão. Professoras, sabe? As profissionais responsáveis pela formação de cidadãos…

Um grande amigo francês, que morou aqui entre 2013 e 2015, custa a entender que aquele Brasil que ele conheceu já não existe mais. De lá, ele lê com ávido interesse as notícias dessas plagas e franze o cenho da mesma forma que eu o fazia quando me debruçava sobre livros de física, nos tempos de colégio. “Como vocês deixaram chegar a isso?”, “por que não estão nas ruas, queimando carros?”, “quando vão reagir?”, são algumas das perguntas que o gringo faz e que, envergonhado, não sei responder. Falo como se patinasse no seco, sem conseguir lhe explicar o inexplicável. Se a prosa fosse ao vivo, talvez eu lhe mostrasse um sorriso amarelo.

Do lado de dentro, notei que já não mantenho um Pessoa ou um Manoel de Barros na cabeceira e deixei de abrir Leminski e ler um poema ao acaso, como quem consulta a sorte do dia. Nos trouxeram a um patamar de terra-arrasada, em que se tornou fútil, constrangedor ou supérfluo contemplar o que, em condições normais de temperatura e pressão, embeveceria qualquer um: um pôr-do-sol, um filhote de cachorro, uma mensagem da menina de quem se gosta. É aquela história: Dante destinou os rincões mais sombrios do inferno ao que se mantiveram neutros. Há que se posicionar. Quem tem um banquinho, que suba nele e grite. Ali fora, mais um beija-flor apareceu para bebericar água com açúcar. Há de esperar. A poesia está em suspenso.


Para ir além

O morto da marquise

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