À francesa

Quando, em 1956, passou a integrar o cast de instrumentistas da Rádio Nacional, Waltel Branco – que ainda não era maestro, mas guitarrista e violonista – prontamente aderiu ao circuito boêmio da capital federal. Quando dava o expediente por encerrado, acompanhado de colegas da portentosa emissora, o músico acorria ao Vermelhinho ou ao Villarino, dois de seus bares prediletos. Às mesas, dava com figuras do quilate de Pixinguinha, Dolores Duran, Silvio Caldas, Rubem Braga, Sergio Porto, Fernando Sabino e Vinicius de Moraes, que umedeciam as conversas sobre música, política ou literatura com copos e mais copos de uísque. Até aí, tudo normal, se não fosse o fato de Branco cultivar uma característica incomum – quase incompatível – para a boemia: ele não bebia. À alta madrugada, quando todos já tinham esticado a alguma boate de Copacabana, Waltel saía de fininho – e completamente sóbrio. Quando davam por sua ausência, o instrumentista já dormia o sono dos justos. Adiante, quando era cobrado pelos companheiros da noite, Branco se fazia de bobo: “Eu me despedi de vocês, sim. Vocês é que estavam bêbados e nem viram”.

Quem me narrou a história foi o próprio Waltel, há sete anos, em uma de nossas prosas. A passagem me pôs a refletir e, por conseguinte, a legitimar um comportamento que eu vinha adotando inconscientemente havia um tempo: o de sair à francesa. Há algumas diferenças, é claro. Diferentemente do velho maestro, sou chegado a uma cerveja, a um rabo-de-galo e a uma dose de cachaça (não, necessariamente, nessa ordem). Naqueles anos, quando saía da redação do jornal em que trabalhava, costumava bater ponto em botequins do Baixo São Francisco, topando, amiúde, com um ou outro colega de copo. Creio que não tenha havido um balcão daquele enclave em que eu não tenha escorado o cotovelo e jogado conversa fora com alguém que bebericava um trago.

O problema se dava um pouco adiante. Sempre que eu fazia menção de ir embora, sobrevinham os protestos: “Mas já? Ah, não! Fica aí! Só mais uma!”. Não que minha companhia fosse lá grandes coisas, mas é próprio da etiqueta dos botecos querer espichar a noite ao máximo, testando a paciência de garçons e pondo à prova a disposição etílica dos convivas. Que o diga o amigo Boca, que não sabe ver o fim das coisas. Como uma saideira não se nega a ninguém, meio sem jeito, eu ia ficando, até para não desapontar os velhos amigos. Quando dava por mim, a madrugada já havia me tragado feito um buraco negro. No dia seguinte, as olheiras me denunciavam e não havia café que me afastasse o sono. Fazer o quê?

A coisa se deu quando compreendi que eu estendia a noite muito menos por satisfação própria e muito mais para agradar meus nobres camaradas. Foi aí que adotei a saída à francesa como regra. Em pouco tempo, desenvolvi habilidades para a prática: passei a intuir o momento exato para sair furtivamente, sem que meus amigos percebessem e, por conseguinte, protestassem contra meu intento de partir. Silencioso e discreto feito um ninja, eu desaparecia sem ser notado nem deixar rastro. No dia seguinte, no entanto, quando meus camaradas acusavam minha fuga, eu corava e sucumbia ao peso na consciência. “É, talvez não me custasse ter ficado um pouco mais. Fui mal”, balbuciava eu, um tanto envergonhado, meio desenxabido.

A conversa com o Waltel me ajudou a pôr a coisa em perspectiva. Há que se reconhecer os próprios limites. Está mais que comprovado que gosto de celebrar com os amigos, mas o fato é que não estou mais para varar madrugadas. Se o botequim equivalesse a uma pista de atletismo, eu estaria mais para um corredor dos duzentos metros rasos do que para um maratonista. Nessa categoria, é natural que eu queira me recolher antes dos fundistas dos copos. É aquela história: cada um com seu cada qual. Custou, mas aceitei minha condição de não estar entre os que avançam noite adentro, a ponto de testemunhar o fatídico instante em que os garçons começam a subir as cadeiras sobre as mesas, sinal universal de que a noite chegou ao fim e de que é hora de ir pra casa – ou procurar outro bar.

Nesse contexto, é imperativo demarcar território: defendo a legitimação imediata da saída à francesa e a inclusão da prática em todo e qualquer manual de etiqueta (segura essa dica, Gloria Kalil!). As partidas furtivas evitam constrangimentos e mantêm intactas amizades, logo, se constituem em um subterfúgio de muito bom-tom. Assim, não entendo porque seus adeptos não assumem o velho “perdido”. Os franceses, por exemplo, considerados os pais dessas escapadelas sorrateiras, jogam a pecha ao outro lado do Canal da Mancha: dizem que saíram à inglesa (filer à l’anglaise). De minha parte, compreendi o contexto e as nuances da prática. Estou de consciência tranquila: admito para todos os fins e com uma ponta de orgulho que continuarei saindo à francesa. 

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima