Isolamento social dia 154

Querido diário: ontem a discussão no meu país era sobre uma menina de 10 anos, violentada sistematicamente por 4 anos, grávida dessa violência. Eu sei o que você está pensando, querido diário. Que um grupo saiu de tochas e tridente pelas ruas pra pegar o estuprador, né? Não. Eles foram pra porta do hospital para xingar a menina.

Eu queria escrever isso e parar, porque esperava que isso já fosse o suficiente para denotar o absurdo surreal da situação. Mas infelizmente não é. O corpo de um homem não está tão fortemente no debate público quanto o corpo de uma mulher. Se ela engravida, engorda, envelhece, todos se sentem no direito de apontar que este corpo não está seguindo os bons costumes do que achamos ser bons costumes. Mas o episódio de ontem é um novo nível de jogo baixo.

Eu não vou argumentar, em poucas linhas, o quanto são graves os crimes que essa menina sofreu – a violência física sistemática, engravidar, ter sua identidade e localização revelada. Eu vou argumentar um termo, usado na pandemia, que é “eu mal posso esperar para voltar aos bons tempos de antigamente”. Bons tempos pra quem? Você, no seu umbiguinho, quer voltar em tempos que eram melhores pra você e pra mais ninguém. Pessoas que se dizem religiosas, cercando um hospital, querem voltar aos bons tempos medievais, que eram bons pra homens brancos e ninguém mais.

Nostalgia é ter saudades dos sentimentos gostosos que você teve, pelas pessoas que ama e o que passaram. Retrocesso é querer voltar atrás na necessidade social de seguir em frente e incluir os direitos de todas as pessoas e não só de um grupo de privilegiados. Se o seu bom tempo foi nos últimos quatro anos, pensa que tempo foi esse pr’aquela criança.

Eu gostaria muito que os bons tempos viessem no futuro. Pra muitos, não pra poucos. Gostaria que, nesses bons tempos que virão, quando a gente descobrisse uma violência contra uma menina de 10 anos, que o debate público fosse sobre o estuprador, não sobre a vítima.

Que saudades dos bons tempos que ainda virão.

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