Embrulhe meu ego numa sacola descartável pra viagem

Durante esta maldita pandemia eu vou ao mercado. Uma parte de mim queria muito ter se adaptado à compra online e pedir pra entregar em casa, pela comodidade e segurança. Mas o velho razinza que habita em mim quer ver direitinho que queijo é esse, que não vão me escolher justamente o queijo mais feio e mais caro de pesado, que não vão pegar o iogurte que tá mais perto de vencer, que não vai ter três bananas boas na frente e duas horríveis atrás! A mim, não me enganam! Por isso, eu me chamo Algenor Bragança e Bragança – sim, meu autonome de velho é Algenor, e nada mais antigo e ultrapassado do que qualquer coisa ligada à família real (que, em dobro, fica mais velho ainda).

Nas compras que preciso de pouca coisa vou a pé, aproveitando o mercado próximo, e levo uma sacola reciclável reforçada. Quando teve toda a crise das sacolas plásticas, de que os mercados não iriam oferecer mais, que tinha que ser biodegradável e etc, lembro de não achar nada demais isso. É uma adaptação normal, que a gente já deveria ter passado e precisamos ajudar o meio ambiente. Também lembro de, constantemente, esquecer de levar a sacola e ter que apelar pras plásticas em cada mercado. É só um lembrete pra você, leitor, entender que eu não jogo caixa de papelão dentro do lixo comum, mas também não ando com o meu próprio canudo reciclável pra cima e pra baixo.

Eu já tentei ser um desses, essa figura olímpica que conta que não produz lixo nunca quando sai de casa, mas não tive resultados. Lembro de me dar conta o quanto era estranho ir em restaurantes japoneses e sempre gastar um par de hashis que seria usado para comer uma vez e jogado fora. Todo mundo no restaurante fazia o mesmo: abria um saco de papel, separava os dois hashis, pegava um pratinho de plástico pra colocar o shoyu e tudo ia pro lixo. Especialmente quando eu ia trabalhar em São Paulo, tinha um buffet mais em conta, no almoço, que eu acabava indo três dias seguidos, o que significa três dias de todo esse lixo. Uma amiga me deu um caixinha com um hashi desmontado, que era só encaixar, usar, desencaixar, lavar quando chegar em casa, repetir o processo. Usei duas vezes. Produzi, além dos palitinhos, uma caixinha abandonada em casa, sem uso.

Aí sempre vem alguém, ou documentário, ou post de rede social e me lembra que o verdadeiro vilão é a indústria ou o agro, aí me sinto bem e fico de boas!

De volta pro mercado. Seleciono o queijo menos caro, o iogurte com data de validade mais pra frente, cinco bananas descentes. Algenor está contente. Vou pra fila do caixa rápido e lá, naquele corredor cercado de barrinhas de chocolate e outras coisas que podem ser o seu último desejo de consumo deste dia, vejo a cena que desafia a minha lógica.

Uma mulher começa a embrulhar suas compras em sacolas plásticas. Não julgo muito, eu esqueço a minha, estamos ok, mas me sinto meio superior porque estou com a sacola reciclável à mostra. Todo mundo tá vendo que tipo de pessoa ela é e que tipo eu sou (hoje), né? Ela é dessas, eu sou dos outros.

Quando todas as compras dela estão embrulhadas em sacolas plásticas, ela tira, do próprio bolso, uma sacola reciclável. Sabe dessas que dá pra dobrar e ficam mínimas? E começa a colocar as sacolas plásticas dentro da sacola reciclável. Algo em mim entorta e penso que não é possível. Algenor, dentro de mim, grita “Minha filha, pelamordeDeus, você não percebe que isso é burrice?”, mas acalmo meu velho interior e tento aguçar meus sentidos.

Algenor, acalme-se. Olhe melhor. Ela está colocando sacolas que tem produtos pesados dentro, ela está evitando de usar uma segunda sacola. Ah, menos pior! Ainda é idiota, porque ela poderia usar só a reciclável, mas é menos pior. Seu Algenor volta a abrir o jornal de domingo e olhar o preço nos classificados. O silêncio e a calma reinam novamente na minha mente.

Mas ela tira uma segunda sacola reciclável e coloca o restante das outras sacolas dentro desta. E vai embora.

Ela iria embora, melhor dizendo. Porque antes dela sair eu corro, agarro ela pelo ombro, tiro as duas sacolas de suas mãos e coloco sobre aquela área do caixa onde as compras já passaram pelo “piiiiiiiiiiiiip”. Arranco todas as sacolas plásticas, rearranjo as compras pra nada ficar amassado, pra ela ver que é possível e digo alto e articuladamente atrás da máscara, para que todos nos ouçam:

– …e é assim que se faz!

A caixa que atendeu a mulher puxa os aplausos. O mercado inteiro se junta a ela. A gerente está emocionada pelo gesto e me oferece crédito na loja, já que ela economizará milhares de reais pelos próximos anos porque, finalmente, todo mundo agora entendeu! Minha boa ação é ainda melhor porque tive benefícios diretos em dinheiro, não só toda essa bobajada de melhorar o mundo. Eu sou o herói da reciclagem! O aquecimento global retarda seus efeitos o suficiente para que os líderes mundiais concordem numa solução que salva a vida na Terra!

Ou, talvez, eu só tenha visto a mulher indo embora, chego no caixa e pergunto se é comum isso acontecer. Ela diz que sim e ela mesmo não entende a lógica. Eu entendo o absurdo do que acabou de acontecer, a moça no caixa entende o absurdo do que acabou de acontecer, mas a pessoa que fez o absurdo não faz a menor ideia.

Talvez agarrar a mulher, humilhá-la em frente a um mercado inteiro retirando as sacolas não seja um modo muito eficiente de ajudá-la a se juntar ao nosso lado – meu, da moça do caixa e do Algenor –, que achamos a sua atitude absurda. Se eu desse um olhar bem torto para ela, pra que ela sentisse a minha desaprovação sem falar nada, talvez também não funcionasse. Se eu filmasse ela secretamente e postasse nas redes sociais, só pra ter aquele movimento gostoso de aprovação dos já convertidos e aquela chuva de likes/dopamina, isso provavelmente também não adiantaria.

E, nessas horas, o pequeno sonho acordado de ser um herói do seu pequeno mundinho burguês dá espaço para a completa sensação de impotência de conseguir alterar o nosso habitat, mesmo que em prol de todos.

Eu tenho fantasias eróticas de ter o meu melhor comportamento e racionalidade alterando pra melhor o planeta – apenas nas horas em que estou tomando atitudes positivas, não em todas as horas, não nas horas que estou fazendo cagadas. A moça, que colocou as sacolas plásticas dentro das recicláveis, também deve ver uns absurdos e pensar “como é que você não enxerga essa cagada?” e, imediatamente, sente-se superior aos seus e pensa que o mundo seria melhor se as pessoas vissem o óbvio.

No fim das contas, só conseguimos ver o mundo pelo nosso ego e não conseguimos deixá-lo de lado pra ouvir mais, mudar e nos adaptarmos mais rápido exercitando nossa empatia.

Algenor de Bragança e Bragança, do alto de sua experiência de vida, coloca sua mão sobre o meu ombro de maneira acolhedora e me consola. “Os jovens são assim mesmo”, ele me diz, com um sorriso e a paciência de quem já viu muito disso acontecendo. Então eu levo Algenor pra casa, seguro a vontade de fazer um post raivoso de rede social, sento num computador e fico aqui, na esperança, que você tenha tido vontade de ler até o final e que você use uma sacola a menos essa semana. Quem sabe aquela gerente fique feliz e me dê algum crédito em sua loja.


Para ir além

Foi uma escolha muito difícil?

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