Um cliente entra numa farmácia, usando óculos escuros, e vai diretamente até o balcão. Quem o atende é um farmacêutico com cara de recém formado (ou “olhos de recém formado”, porque é o que a máscara deixa a mostra).
– Olá, boa tarde.
– Boa tarde, em que posso ajudar?
– Remédios.
– Que bom, porque somos uma farmácia!
Ambos riem, mesmo sabendo que a piada não era assim tão boa. Mas há que se quebrar a tensão.
– Então, eu queria um colírio…
– Colírio… Aqui na gôndola, nem precisa de receita. Pra tirar vermelho ou pra lubrificar?
– Lubrificar… E tirar o vermelho.
– Hum, então são dois! Um de cada. Prontinho, tá na mão.
– Ótimo. Também queria band-aid, porque lá em casa acabou…
– Nesta outra gôndola aqui. Quer com desenho de bichinho?
– Oi?
– Tem o regular, tem o genérico – que é igual, mas é menos famoso – e tem o de bichinhos. As crianças adoram.
– O genérico, por favor.
– Aqui está, caixinha com 50.
– Ótimo. Deixa ver a lista… Caixa de lenços.
– Caixa de lenços. Tem todas essas.
– São diferentes?
– As caixas são, dentro é tudo lenço!
Só o atendente ri. O cliente parece compenetrado a tentar enxergar, com olhos de raio x, se algum dos lenços valeria a diferença de preço.
– Vou levar esse aqui, que tem 20% a mais.
– Perfeito. Mas alguma coisa pra hoje?
– Sim. Eu quero alguém que me ame.
– … Oi?
– Eu preciso urgentemente de alguém que me ame.
– Mas… é que…
– Eu estou com coração partido, não paro de chorar há dias e preciso de alguém que me ame.
– Senhor… é que aqui é uma farmácia…
– Então, pra ter alguém que me ame eu preciso de uma receita?
Só o cliente ri. O atendente fica em dúvida se deveria fazer o mesmo.
– Infelizmente, pra achar uma pessoa especial, alguém que ame a gente, não tem receita.
Os dois se olham. A frase soa propícia, profunda, clichê, tudo ao mesmo tempo. O atendente só entende a repercussão de sua frase depois de dizê-la.
– Desculpe, eu não queria…
– Tá tudo bem, não se preocupe… Eu tenho procurado alguém que me ame em outros estabelecimentos também, todos sem sucesso.
– Não é algo que se venda…
– É… Acho que não…
– Se me permitir perguntar…
– Sim?
– O que aconteceu com as pessoas ao seu redor?
– Elas… Foram se afastando. Cada vez mais. E agora…
Uma lágrima corre por detrás de uma das lentes dos óculos escuro. O atendente oferece um lenço.
– …gostei desse lenço. É qual?
– Da caixinha roxa, de baixo.
O cliente troca a caixa que tinha escolhido pela roxa.
– Obrigado… Por me escutar.
– De nada. A gente normalmente pergunta pro cliente se ele não achou alguma coisa que queira, mas no seu caso eu já sei.
– É, não achei. De novo. Talvez seja a hora de parar de procurar.
– Não!
O impulso do atendente era de colocar a mão no ombro do cliente, mas pandemia, né? Era quase como se, na frase seguinte, um braço fantasma estivesse ali, conectando ambos, numa ternura fraternal próxima a gôndola de lenços de uma farmácia.
– Isso a gente procura a vida toda e celebra a hora que acha. Você também vai achar.
– Talvez… até mesmo numa farmácia?
– Talvez… a gente nunca sabe, né?
Embaixo das máscaras haviam dois sorrisos, aparentemente.
– Por hoje, posso lhe ajudar com mais alguma coisa?
– Deixa eu ver na minha lista se eu esqueci de alguma coisa… Ah, você tem kit de tratamento precoce?
Imediatamente, a mão fantasma do atendente saiu do ombro do cliente.
– O quê?
– Tratamento precoce, você sabe…
– …por acaso as pessoas ao seu redor se afastaram pela sua insistência nesse tipo de assunto?
– Sim. Como você sabe?
– Senhor, acho que tenho algo pro senhor tomar que vai melhorar muito a sua vida.
– O que é?
– Consciência. Vem comigo aqui no balcão.
Pacientemente o atendente falou com o cliente de coração partido, para que ele tomasse consciência duas vezes ao dia, em doses menores no começo, depois passasse a injeções cavalares até que a doença que o consumia fosse embora. O cliente não sabia que, ao entrar naquela farmácia, ele reencontraria um grande amor.
O amor próprio.