A pior Ópera do ano

Os acordes da orquestra anunciam que os instrumentos estão sendo afinados. O frenesi está no ar, porque o evento todo tem um jeito diferente, afinal toda a orquestra veio parar de última hora na Ópera de Arame, teatro curitibano criado para receber grandes eventos dramáticos. Hoje não será diferente. Todos se aprontam pois já vai começar.

Entra o spalla, o primeiro violino da orquestra. É ele quem dá o tom. Por ele todos se afinam. Quem executa tal tarefa é Monsieur Traiano. Alguns dos músicos ao redor do spalla perguntam se é prudente estarem ali, prestes a tocar músicas com o vozerio que se escuta do povo as portas do teatro. Mesmo ouvindo o povo que tenta forçar sua entrada no auditório, Monsieur Traiano permanece irredutível, apenas levanta as sobrancelhas e alfineta: – Vamos tocar porque a bomba é lá fora.

Os músicos se preparam. Mesmo os mais reticentes, mordendo os lábios por dentro, armam seus instrumentos e se preparam para seguir conforme a música. Depois de alguns atrasos, a ópera No Vintém dos Outros é Refresco é finalmente iniciada.

Curiosamente, nesta apresentação, não há plateia. Os músicos tomaram a estranha decisão de tocarem só entre eles, sem permitir o escrutínio das pessoas que serão afetadas pela sua obra.

Entra Monsieur Romanelli. Garboso, imponente, ele canta com eloquência. Sua voz sobe além dos gritos e demandas ouvidas do lado de fora do teatro e ele segue tal qual o libreto da obra demanda. Suas canções são polidas, certeiras, ele conversa com os instrumentos que são favoráveis e desfavoráveis com igual maestria. Quem o ouve cantando pode até esquecer o que vai acontecer ao final de suas arias.

Em oposição de physique du rôle entra Monsieur Hussein Bakri. Ninguém acredita que esta pessoa, de estatura mais baixa, pudesse ter o fôlego necessário para tal iniciativa. Quando sua voz ressoa, da primeira vez, ela é calma, serena com um plácido domingo de verão. Mas basta algum dos colegas de cena falar “governo” em seus ouvidos que o possante cantor explode em energia, aterrorizando todos ao seu redor pela veemência de seus trinados. Não há cortesia em suas harmonias, apenas uma eficiência ímpar.

Ao fundo, um coro de sindicalistas reduzido – afinal, neste palco, só poderia entrar a nata da sociedade – tenta cantar a sua parte. Todas as vezes que eles tentam cantar um pouquinho mais alto surge um personagem encapuzado e de farda, com a data 29 de abril bordada no colete e um grande cassetete na mão. O coro mantém a sua voz o quanto pode, sendo repetidos pelas vozes que ficaram de fora desta apresentação.

O fato que mais chama atenção no palco é que não se vê o maestro. Seu púlpito está vago, mas todos parecem seguir a música corretamente. Só aqueles com olhar mais atento vão perceber escondido lá em cima, dentro de um camarote escuro muito semelhante a uma toca, a mão firme que segura uma baqueta precisa. Afinal, ao ficar distante dos olhares, o maestro sempre poderá dizer que nunca teve nenhuma relação com a apresentação – mas os músicos nunca conseguiriam fazer tudo isso sem ele.

Artisticamente não podemos avaliar o resultado de tal obra. Certamente vamos senti-la, na pele, pelas décadas que virão. Mas a decisão de mudar o espaço da apresentação na última hora, a exclusão da plateia, tudo o que cerca o evento nos dão a certeza de que a Ópera de Arame será, mais uma vez, o palco de uma grande tragédia paranaense.

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