Raiz

“Os mosquitos vinham e ‘tchupi’, e me picavam, né? Quer dizer, o pessoal diz ‘mordia’, mas mosquito não tem dente, né? E eles morriam com o meu veneno!”. Ele ri gostosamente, aquele riso que conheço a minha vida inteira – uma série de “há-há-há” entrecortados entre as lufadas de ar que os pulmões sorvem. O riso geralmente acompanhado pelo movimento dos braços, que se abrem por um instante, e depois voltam a se cruzar por cima do peito.

Sempre que ele faz esse movimento, tão familiar, meus olhos correm para o dedo anelar esquerdo – ou para o toco do que um dia foi o dedo anelar esquerdo do meu avô. Ainda criança, me recordo do encanto que a amputação acidental produzia – tocava a superfície abaulada, perfeitamente cicatrizada e ligeiramente mais larga do que o tronco que sobrou do dedo. Apertava o prolongamento grosso e enrugado, testando as diferentes texturas: a ponta carnosa e fofa, o restante dos ossos sólidos.

Os mosquitos, aos quais se refere, eram a única companhia debaixo dos pés de café nas plantações de São Paulo, onde a família, baiana, foi parar depois de deixar Guanambi. “A mamãe botava eu embaixo do pé de café, senão eu não deixava ela trabalhar”.  Sorrio toda vez que meu avô, com mais de 80 anos, faz referência à bisa com um sonoro “mamãe”, me enche os ouvidos (e o coração). Reza a lenda que foi se encolhendo do frio em São Paulo que os braços acabaram levemente tortos – calcificaram errado. O esquerdo, diz ele, mais do que o direito.

Sentada no sofá, deixo que vá despejando as memórias – mesmo quando se perde no fio do tempo, ou quando muda de assunto abruptamente, resumindo anos em simples frases. Sinto que esses pequenos momentos passaram a valer ouro, mas têm a tendência de escorrer por entre os dedos com a rapidez das areias do tempo.

“Farinha, tapioca, nas fazendas tinha essas coisas porque elas estavam preparadas para receber nordestinos. Eles já sabiam que mão de obra só encontravam do Nordeste. Traziam a gente. Eu era criança”, resume a história do que denomina de “monstrengo do seu avô” – da Bahia, até chegar ao Paraná.

Em 11 de fevereiro de 61, quando já não tinha dedo anelar esquerdo, casou-se com a minha avó. 58 anos de casados – uma vida, a do meu pai, que veio dez meses depois, prematuro, segundo os dois. “Era uma saída muito pequena para um garoto daquele tamanho”, ele ri ao rememorar o nascimento do primogênito. Também dou risada, enquanto penso que uma vida (e uma crônica) é um palco muito pequeno para um personagem como o meu avô.

 

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