O abutre

Os capacetes dos socorristas descansam sobre o painel da ambulância, dentro da cabine do veículo. A viagem até o hospital mais próximo dura 18 minutos, preenchidos apenas pelo tremelicar dos objetos contra o plástico do painel. Não ouso me mover, nem descolar os olhos da rodovia – um transe interrompido apenas por uma pergunta, já às portas da Emergência do Hospital Metropolitano. 

“É acidente, moça?”, me indaga uma figura magra, metida em uma camisa social de manga curta. Não fosse o questionamento, meu senso de urgência jamais teria me permitido notar o homem, postado à entrada do hospital com o aparelho celular em mãos. Abro os lábios para retrucar um sonoro “Não!”, mas hesito. Que interesse aquele desconhecido poderia ter no bem-estar de estranhos?

Aperto os olhos e franzo a testa. Um único homem, trajando preto, parado em frente à emergência de um hospital em uma tarde de quinta-feira. Contemplo as possibilidades. Endureço minha expressão, me recuso a respondê-lo. Ele não se dá por vencido e, quando a porta traseira da ambulância se abre, estica o pescoço e entorta a cabeça até que os olhos consigam espiar as entranhas da desgraça alheia. Suas feições esmorecem ao perceber que o socorrido caminha com as próprias pernas, os membros todos no lugar. Não passa de uma reação alérgica mais severa, mas a raiva me inunda e desvio os olhos do homem-abutre. 

As portas do hospital se abrem e dirijo-me à companhia de quem precisou ir à emergência hospitalar em pleno janeiro: mães com crianças de colo, idosos e adultos distribuídos ao longo das cadeiras enfileiradas. Na ampla sala, o aparelho televisivo conduz um transe midiático violento, embalado pelo tédio da espera – mortes e acidentes são exibidos sem o menor pudor ao longo dos fastidiosos 180 minutos em que permaneço ali. 

Do outro lado da rua, o Café Majestic exibe seus salgados estrategicamente posicionados de frente para a sala de espera. Um convite ao qual me rendo com certa inquietação. Já se passaram oito horas desde minha última refeição, quando adentro o recinto. Embalada pela conversa dos balconistas, uma solitária formiga preta caminha vagorosamente pela superfície assada de um salgado. Um ambiente bem menos estéril. 

Fora da estufa de alimentos a temperatura passa dos 20 graus, mas o inseto parece não se importar. Pendurada na parece logo acima dos salgados, uma placa decorativa dá um aviso prudente: “Mais vale uma coxinha cozida na mão, do que duas fritando”. 

Ainda penso no homem-abutre quando o apito estridente do micro-ondas avisa que meu almoço improvisado já está quente. O caminhão de lixo passa em frente ao hospital a uma velocidade irresponsável. A conversa dos atendentes é abafada pelos guinchos sôfregos do único ventilador do estabelecimento. Sento-me a uma das mesas e constato a ausência da soturna figura em frente às portas de emergência. Talvez o homem-abutre tenha encontrado uma vítima. A televisão do café anuncia mais um acidente.

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