Ela dorme embalada pelo trepidar do carrinho. O corpo, diminuto, está dobrado sobre si mesmo – a posição só me permite ver os cachinhos castanhos, empoleirados na cabecinha que chacoalha a cada volta das rodas. Os bracinhos parecem envolver um cobertor vermelho vivo, e um pedaço da chupeta azul escapa por baixo das bochechas rechonchudas. Os dois anos e oito meses de Nicole parecem não ligar para a voz afinada que canta, em plena XV de Novembro, “I Put a Spell on You” – uma interpretação que deixaria Nina Simone orgulhosa.
Ao contrário da irmã, absorta em sonhos quaisquer, Laura – de apenas um ano e três meses – parece preferir sorver cada pequeno acontecimento ao seu redor. Os olhos atentos à agitação dos transeuntes, a cabeça coroada de cachinhos (como os da irmã) virando a cada novo movimento. Nada escapa aos grandes olhos castanhos da menina – estatelados às maravilhas do mundo.
As duas pequenas estão desajeitadamente acomodadas dentro de uma caixa de papelão, no carrinho em que os pais recolhem resíduos sólidos para a reciclagem. Junto às crianças, os materiais que servirão para pagar o aluguel da casa no Capanema ou, talvez, as fraldas e a comida da semana.
Os dedos gordinhos e pueris se enroscando enquanto agarram a borda de papelão da caixa – a moldura pela qual observar o mundo. Embora traje calças e manga longa, os pés estão desnudos sobre a superfície grossa do recipiente que a contém. Laura tem o semblante sério, uma austeridade que não se dissolve nem mesmo nos braços do pai, que passa a carrega-la no colo. Enquanto o quarteto se desloca ao longo do calçadão, passo a pensar em uma Laura – outra – aquela que virá a ser minha sobrinha.
A internet me diz que Laura, o nome, vem de “loureiro”, que significa vitoriosa. A menina não desgruda os olhos de mim, e eu penso em Laura, tantas Lauras, outras Lauras. Seguimos em caminhos opostos, a distância entre nós preenchida pelos acordes finais da canção: “You hear me, I put a spell on you”.
Leia mais crônicas de Ana Justi
https://www.plural.jor.br/incivilidade/
https://www.plural.jor.br/pequenas-narrativas-sobre-o-luto/