Incivilidade

Por entre as gôndolas do mercado, os corpos se movem com o peso do cansaço do cotidiano. O feriado do dia anterior, em plena quarta-feira, parece ter criado uma outra segunda-feira: a fila do caixa rápido já se estende para além das prateleiras que delimitam o seu comprimento inicial. São 20h40 e ainda há listas de coisas a se fazer, obrigações que ficaram para depois.

Sigo o fluxo da fadiga: os pés já reclamam do tempo excessivo em funcionamento, sustentando o peso do corpo; as juntas estralam alto; e as pálpebras semicerram-se. O cansaço se condensa em suspiros. Quero crer que uma dose de açúcar industrializado pode restaurar um pouco da energia que preciso para chegar ao fim dos afazeres. Uma ida até o corredor de doces talvez aplaque essa condição letárgica que já apossa dos meus músculos.

Apesar do movimento no interior do estabelecimento, quase não há ninguém entre as prateleiras forradas de guloseimas. Além de um homem de meia idade e um menino (com dificuldades em decidir qual barra de chocolate levar), há apenas um rapaz e seu carrinho de compras. Faz um frio leve, típico de outono. Um suéter de lã foi a peça escolhida para protegê-lo das intempéries curitibanas – a logomarca de grife estampada discretamente na altura do peito. A gola da camiseta social delicadamente ajeitada por cima do agasalho.

Os pés se apressam em direção ao carrinho, estacionado em frente à prateleira que observo. Em meio ao movimento precipitado, a extremidade de uma caixa, posicionada na prateleira mais baixa da gôndola, se enrosca nas reentrâncias metálicas do carrinho de compras. Uma série de pequenos pacotes amarelos contendo doces de amendoim e chocolate acabam estatelados no chão.

Com a mesma rapidez, o rapaz se volta em direção ao estrago. “Um strike”, brincaria minha mãe, ao mencionar qualquer grande estrago que causássemos por desleixo. Ainda com o olhar fixo nos pacotes, o homem começa a erguer o pé direito, tirando-o completamente do chão. O movimento, no entanto, chega ao fim de forma surpreendente: o moço chuta os itens para longe de si, como se – afastando-os do próprio corpo – fosse possível desvincular-se do incidente. Um misto de cansaço e indignação me tomam: “Sério?!”, exclamo enquanto me abaixo para recolher os pacotes do chão.

 

Leia mais crônicas de Ana Justi

https://www.plural.jor.br/pequenas-narrativas-sobre-o-luto/

https://www.plural.jor.br/a-lapiseira-da-escuta/

 

Sobre o/a autor/a

Rolar para cima