Fugaz

Passo pela entrada do que, no meu imaginário, costumava ser uma residência. A construção ocupa uma larga porção da Nossa Senhora da Luz. Nada fora dos padrões do pouco que conheço do Hugo Lange. Costumo brincar que em Curitiba é possível medir a opulência de um bairro pelas suas calçadas – se forem difíceis de andar é sinal que poucos pés, ou pés sem muita voz, costumam passar por ali.

Diante das imponentes araucárias que se erguem do gramado, em frente à casa em questão, já me desequilibrei algumas vezes. Calculo que o jovem cobrador da estação-tubo, que sempre me sorri gentilmente por baixo do bigode loiro, deva ter acompanhado com emoção uma boa parcela de “quase-tombos”.

A primeira vez que reparei no muro e nos portões, de um laranja terroso, já passava do horário comercial. À noite, era impossível não reparar na luminosidade verde, advinda da luminária externa da “casa”. Dias mais tarde, foi uma fila de viaturas (que contemplava todas as autoridades passíveis de terem carros oficiais), com suas luzes avermelhadas, que me despertaram para o endereço.

Com o tempo, foram os detalhes que passaram a chamar a atenção: o contraste do muro berrante com as paredes da construção, de um claro azul-esverdeado. Os ferros todos tingidos de dourado. Um jogo de “mostra e esconde” do prédio que, por fim, me seduziu. Talvez fosse a discreta abertura no muro, estreita e quase imperceptível. Ou a grande porta, revelada pelas grades – adornada por vidro fumê e arabescos dourados. Quiçá, a figura feminina, em frente à entrada principal da residência: uma estátua dourada, tentando tomar para si ares de arte greco-romana. Ou ainda, a grande abertura do que costumava ser a entrada de uma garagem ostentando a mesma estrutura de vidro e dourado, adornando a área voltada à rua. Aberta, uma estreita porta – um dos poucos pontos vulneráveis da fortaleza – deixava transparecer apenas resquícios: um piso frio, paredes do mesmo tom azul-esverdeado, uma cadeira plástica.

Vez ou outra, carros importados se revezam no estacionamento do recinto. Não raro, sempre após às sete da noite, podia-se ouvir, e ver, presenças masculinas no ambiente mais exposto. A única presença feminina, cuja existência presenciei, se fez notar por volta das 18h16, em um dia qualquer da semana. As luzes ainda estavam todas apagadas quando a jovem de cabelos loiros se dirigiu até a porta mais visível. O par de jeans ajustados das canelas à cintura mostrando o corpo magro. As costas, expostas, revelando uma tatuagem que tomava toda a área com uma temática asiática – uma gueixa traçada em linhas pretas. Sumiu na escuridão, aparentemente inabitada.

Ainda me recordo do gosto amargo do desencanto na noite em que, desavisada, avistei a mácula na fachada discreta – ali, no topo de um poste, os dizeres “Bar executivo” a sinalizar para todo o universo o encanto das minhas pequenas, e secretas, descobertas.

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