Erva Doce

Ao longe alguém grita: “Alberto, uma coca!”. É o tipo de grito amigável, de quem tenta falar acima do zum-zum-zum do bar, mas mantém um tom manso. Da saleta adjacente ao balcão, o som abafado da bateria e do baixo ressoa em meio ao público muito maior do que o lugar poderia, de fato, abrigar.

Alguns frequentadores ainda se amontoam pelo bar, dividindo espaço com os livros à venda, e algumas poucas cadeiras e mesas dispersas pelo diminuto salão. Sob a fria luz branca da estufa de alimentos, a sombra do encosto das cadeiras se levanta contra o chão de lajotão, subindo pela parede salmão até alcançar o papel de parede de fundo verde, e suas pequenas flores em cores quentes. A cada solo de baixo, os ânimos se exaltam e os gritos da multidão ecoam da sala escura.

Uma vira-lata, de coleira, passeia entre os transeuntes – já meio alcoolizados, dado o avanço da hora. O animal tenta acompanhar o dono, um sujeito de boina preta e jaqueta de couro que, ao contrário da maior parte dos presentes, parece ignorar qualquer coisa que se passe no ambiente (seja a venda de cerveja, ou os estridentes sons do show que acontece no cômodo adjacente). Tomado por uma parcela de inquietude, o homem se senta a uma cadeira, e curva as costas enquanto se debruça sobre a leitura rápida de alguns dos livros disponíveis. A intervalos de tempo, interrompe o gesto para esticar a mão direita sobre a cabeça da cachorra, a qual chama de “filha”, e lhe fazer um agrado.

Por trás do balcão, observo aquela figura esguia, metida no que mais tarde perceberia ser um padrão – quase um estilo de vida: a camisa jeans aberta revelando, por baixo, uma camiseta de estampa simples; o cinto mantendo o jeans, de corte reto, no lugar. Nos pés, o par de tênis all star abrindo caminho, ainda que meio desengonçadamente, para que o pouco mais de um metro e noventa se desloque entre um pedido e outro. Pedaços de pizza, coxinhas, doces, copos de chope. As mãos espalmam ruidosamente a cada conhecido que adentra o recinto – depois os braços se fecham em um caloroso abraço. Um afeto ao qual tive que me adaptar.

Encaro a caixa plástica com os dizeres “Casa das Pulgas” quando a música na saleta finalmente cessa. O ambiente passa a ser preenchido por conversas animadas, entrecortadas aqui e ali por trechos das canções apresentadas durante o espetáculo – uma espécie de eco natural que busca estender a diversão. O suor já transpassa o tecido das camisas estampadas. Enquanto a fila do banheiro aumenta, o ar da rua é tomado pela fumaça dos cigarros em brasa. Não há mais pedidos no balcão.

Ele finalmente se aproxima, posicionando-se a uma distância fadada a ser cada vez menor. Hesito em tocá-lo. É como se cada movimento meu estivesse na medida exata entre o querer e o medo. Me conheço o suficiente para saber o que significa aquele sorriso pendurado no canto do lábio, e as bochechas que insistem em corar. Sei o que a atenção aos detalhes de cada movimento, e a forma como me apego a cada um deles, quer dizer. Como se os pequenos rituais desprovidos de significado compusessem uma sequência cinematográfica. “Você vive em uma crônica”, alerto. Ele aquiesce, incerto quanto ao deslumbre que meus olhos veem.

“O quanto posso confiar em você?”. Estamos apenas nós, dois corpos dividindo o mesmo tempo-espaço em meio a um bar já vazio. O primeiro passo é tirar o celular do bolso, um gesto aparentemente inocente – que passou a me alarmar depois daquela noite. Em seguida, retira o papelote de um dos bolsos, ou da carteira. O pó branco se espalha de forma desigual pela superfície negra do aparelho celular. Luto para não desviar os olhos quando ele finalmente aspira a carreira de partículas leves. Me obrigo a absorver cada detalhe daquele movimento e dos seus ruídos. É o que mereço por me importar. Por querer. Aos poucos a substância deixa a superfície da tela, subindo pela nota de dinheiro. Com a ponta dos dedos, ele agrupa os grãos que ainda restam dispersos – mantendo os lábios cerrados, deposita-os sobre a gengiva inferior em um movimento de vai e vem.

Sem muito esforço, ele continua a me conduzir por esse mar desconhecido, madrugada adentro. É como se, mesmo absorto, o seu senso de direção permanecesse intacto. Talvez mais por curiosidade, do que por uma decisão baseada em juízo, eu tenha ficado naquela noite, e voltado em outras tantas – ansiosa pelos abraços desajeitados, reverberando com cada novo diálogo travado. 

Já amanheceu quando, no meio da faixa de pedestres ele se vira para trás. Sorri. “Se cuida!”, grita enquanto agita os braços no ar, uma piscadela cúmplice acompanhando o gesto. “Não peça algo que você não faz!”, grito em resposta. Ele segue andando de costas, um passo por vez, enquanto atravessa a avenida. Penso na dose de conhaque que vai escorrer por sua garganta às nove da manhã de um sábado. Sem olhar para trás, sigo em outra direção. O coração pesando a cada passo.

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