Aquilo que nos toma

O primeiro sinal foi a meia volta que a mulher de meia idade fez alguns metros a frente, do outro lado da rua. Com um movimento contínuo, sem estacar, ela simplesmente chegou até certa altura do asfalto, virou o corpo e passou a andar no sentido contrário. Observei enquanto seus pés trilhavam, agora na direção oposta, exatamente o mesmo caminho feito há pouco.

Reduzi meu ritmo. Meus olhos procurando, em vão, no escuro, por algo que motivasse a mudança repentina. Foi só quando alcancei metade da distância, até o seu ponto de retorno, que passei a ouvir os gritos. Hesitei. Eram quase oito da noite e os postes de iluminação já lançavam suas luzes brancas sobre a calçada da Presidente Carlos Cavalcanti, no São Francisco.

A princípio eram só vocalizações de desespero. Uma voz feminina vociferando entre o choro e o grito. Parei, tentando distinguir alguma outra ação, uma direção que fosse. Os carros seguiam, indiferentes, o fluxo do trânsito, subindo em direção à Manuel Ribas, suas luzes projetando sombras contra as paredes dos edifícios. Os gritos vinham da Alameda Barroso. O ritmo cardíaco, se acelerando com a tensão, já palpitava nos ouvidos.

Por alguns instantes, deixei de perceber a calçada de pedras sob os meus pés. Virei-me para a rua, tentando decidir entre direita e esquerda, sobrepesando possibilidades infinitas de um presente sem muitos contornos definidos. Foi um quase inaudível “ladrão” que me trouxe de volta à materialidade dos fatos: noite, sozinha na rua, vagando pelas entranhas de uma região cujas nuances e volteios me são pouco familiares. Retrocedi. Refazer o caminho trilhado anteriormente parecia a única opção plausível diante da impotência e do desconhecido.

As lamparinas do antigo casarão bege, na esquina, já haviam ficado alguns metros para trás quando os gritos passaram a reverberar na estreita e quase deserta rua. Em um rompante, a dupla que protagonizava a cena passou a ocupar a calçada oposta. Ambos eram jovens, e corriam a um ritmo bastante ágil, pouco centímetros separando seus corpos. Ele tinha os cabelos curtos e escuros, trajava uma camiseta cinza com desenhos estampados em preto, e shorts. Às mãos trazia um objeto escuro – possivelmente uma bolsa.  Apesar dos chinelos, ela vinha logo atrás, acompanhando cada movimento da fuga.

Um paradoxo cotidiano: o torpor cruel que nos assola diante da agitação violenta dos acontecimentos. Diante do medo. A moça ainda gritava quando sua figura finalmente foi engolida pela escuridão de uma quinta-feira, o desespero ecoando no silêncio, e na passividade, dos transeuntes.

 

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