A pomba encharcada

A placa avisa, em letras garrafais, que a área é pública, mas o uso é restrito. O cadeado que cerra o portão reforça o aviso. Por trás das grades cinzas do parque público-restrito, uma menina balança suavemente. Seus pequenos olhos miram uma figura de mais idade, talvez uma avó. A anciã acompanha, com os olhos baixo, o cão que fareja a grama.

A cena não parece ornar com o agito dos carros que passam pela Brigadeiro Franco, às seis da tarde de uma quarta-feira. O aconchego familiar do fim da tarde também não combina com o prédio acinzentado ao qual o tal “parque” parece “pertencer”: os únicos pontos de cor da construção se resumem às pichações que cobrem todos os andares. Sigo pensando sobre esses pequenos estranhamentos cotidianos.

Silenciosa, ocupo uma pequena mesa entre as cores vibrantes e as muitas plantas de um café-bar-plantas. Ao meu lado, a jovem engenheira conta ao amigo como conseguiu a proeza de levar 35 milhões para sua empresa – um feito que parece não ter obtido o reconhecimento desejado. Enquanto procuro o tema de um possível texto, volto minha atenção a um grupo de estrangeiros: nove pessoas a espera de uma mesa no estabelecimento de proporções diminutas.

É na ansiedade do entra-e-sai do grupo que me deparo com o maior estranhamento de todos. Ali, em plena calçada, uma pomba cinza – de proporções razoáveis – completamente encharcada em um dia de sol. A ave anda tranquilamente sobre os retângulos de concreto: estica uma pata, depois a outra. As penas empapadas por uma espécie de líquido não identificado. A plumagem, da cabeça ao rabo, enegrecida por conta da absorção. Seus movimentos parecem ignorar a agitação na calçada, bem como as plumas ensopadas. A cabeça permanece altiva, e o peito estufado lhe confere o característico ar de dignidade.

Presumo que o contato do animal com o líquido tenha acontecido em razão de um infortunado acidente – um balde esvaziado sem atenção, uma mangueira ligada muito rapidamente. Antes uma casualidade dos acontecimentos, do que uma ação fria e maldosamente calculada. Qual fosse a razão, ambas ignorávamos os (des)propósitos do universo em meio às nossas buscas – ela por alimento, e eu por inspiração. Era só mais um fim de tarde de sol, com crianças no parque, senhorinhas com seus cachorros, jovens com seus amigos e dilemas, e eu a observar algumas peripécias desinteressantes pelas ruas da cidade.

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