A lista sem fim [aviso de gatilho: estupro]

#1

Ela aponta para o prédio que jaz impassível na esquina do semáforo em que paramos. Apesar do dedo indicador direito estar em riste, mantém as duas mãos no volante, e o olhar colado na via à frente. Distraída me diz: “Foi nesse prédio que fui sexualmente assediada” – assim, como se não fosse nada. Eu já a conheço o suficiente para saber que “assédio” é um eufemismo, e dos grandes.

Seguimos a viagem, enquanto ela narra a história do seu estupro (não confundir com a história dela, são coisas muito distintas). Ele era seu professor, no colegial. Foram a um bar. “Minha visão ficou turva depois da cerveja, acho que fiquei bêbada”, constata como se o consumo de álcool fosse a justificativa lógica de tudo aquilo que aconteceu.

O restante do relato me dá, a cada nova frase, um murro: foi no estacionamento do prédio, dentro do carro, na casa dos pais dele. Ficou com dor, com vergonha, teve medo. No dia seguinte, ele apareceu na porta da sua casa, o discurso todo pronto. Ela queria, segundo ele. Dentro do carro, eu seguro o choro.

#2

“Vem, sem gritar, sem nada”, ele disse com a faca em riste. A memória não permite que se recorde da violência em si, são apenas flashes de medo e estupor. No peito e na barriga, as marcas de mordida e os cortes de faca; nas pernas, os hematomas; cobrindo o corpo, as roupas ensanguentadas. A ameaça de morte que coagiu seu silêncio veio acompanhada de golpes: foram tantos que apagou.

Ao recobrar a consciência, mais do que o sentimento de asco, o choque. Não conseguia se mover. “Eu não vou levantar, se eu levantar vão me ver”. Não conseguia sair daquele lugar. Permaneceu imóvel, o corpo colado ao chão frio da residência desamparada. No útero, a consequência dolorosa do abuso.

#3

Não se lembra de muita coisa: acordou, nua, na manhã seguinte na cama do motel. Se recorda do medo, em algum momento, quando – meio adormecida – ele tentou, mais uma vez, dar início ao ato sexual. Estremeceu, talvez de frio, talvez de pavor. Talvez por conta da culpa de quem mudou de ideia, de quem havia confiado em um amigo de décadas.

Mas se a memória consciente falhava, os recursos do subconsciente eram infinitamente mais precisos. Vieram as crises de pânico, geralmente ali, no entre sono, quando ouvia a aproximação de qualquer figura masculina. Ele acordado, ela semiconsciente. A confirmação do crime só veio anos mais tarde, na mesa do bar, quando ele resolveu se gabar da noite da qual ela não se lembrava.

#4

12 anos. “Não vai dar oi para o seu tio?”

 

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