Braseiro

Em meio à rua, um homem procura alívio. Antes de abrir a braguilha, e desabotoar o botão da calça, olha para os lados furtivamente. A parede do edifício que abriga a Receita Federal, na altura do número 555 da Marechal Deodoro, o protege de possíveis olhares. A obra do prédio dos Correios também garante que outros olhos não flagrem a cena – a caçamba, e o tapume são sólidos e altos o bastante para garantir a privacidade, e o anonimato, de seu ato.

De qualquer forma, os poucos pedestres que ainda caminham pelas calçadas de petit-pavé da João Negrão o fazem distraidamente – o brilho da tela dos celulares é forte o suficiente para ser visto da sacada do sétimo andar. São quase dez da noite. Nos escritórios da Marechal Deodoro, em meio à escuridão, as pequenas luzes dos computadores, ainda ligados, piscam incessantemente.

Já não há o característico cheiro de comida chinesa do restaurante no térreo; nem o entra e sai da academia do primeiro andar. Cessaram também as filas da Previdência, logo na esquina; e os pedidos de trocado nas proximidades do Guaíra. Trago o cigarro enquanto observo uma Curitiba de passos sonolentos.

As três pistas que deixam a Praça Santos Andrade, e se transformam em quatro ao cruzar a Marechal, exibem seu asfalto iluminado por lâmpadas amareladas. O caminho segue cortando o breu do céu noturno até convergir com o horizonte – o limite imaginário da altura dos meus olhos. O mar de luzes brancas e amarelas dos prédios se estende ao longo do trajeto.

Um homem, visivelmente alterado, adentra a rua com passos cambaleantes. O vulto diminuto estufa o peito, e passa a bradar aos céus: “Wilson! Eu te odeio, Wilson!”. As luzes permanecem impassíveis: os sinaleiros abrem e fecham, os carros freiam, os cigarros se acendem, os computadores piscam. Sem resposta, a lamúria não perdura – o rancor se esvai com a brisa gélida, até que os gritos cessem. Restabelecido, o silêncio noturno só é interrompido pelos poucos veículos que permanecem circulando.

O que ainda resta do tabaco escorrega por entre os meus dedos. Silenciosamente, a chama se apaga até sumir na imensidão branca da calçada. Já não há pedestre à vista. Amanhã, ao som do trânsito feroz, e sob a névoa de aroma engordurado de comida chinesa, seus restos devem ser recolhidos. Fecho a porta da sacada, deixo a brasa que resta da cidade para fora.

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