Sanguinolência

O Vô Schechter era um Rebbe ao modo dos antigos. Um patriarca de grandes proporções e barba imensa, sempre sentado à ponta da mesa majestosa. Antes de cada jantar, fazíamos a leitura da Torá e o fato de ser criança não me eximia das penalidades.

A vó pesava as mãos no meu joelho quando as pernas andavam inquietas. Também me olhava fulminante quando estavam abertas. Um dia elas aprenderam a obedecer, porque as pernas se controlam, embora o estômago jamais se contente por completo.

Nosso livro me povoava de imagens. Vô Schechter tinha a voz mais grave do mundo e assumia o tom dramatúrgico do próprio criador autoritário.

 Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera foras frio ou quente. Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca.

Pensei nisso por muitas e muitas noites, até ter coragem de perguntar à mãe se D’us também poderia nos comer.

Ela me disse que não, D’us não come nem vomita, mas poderia castigar se fugíssemos às suas regras.

Se D’us não come nem vomita, então ele não sente fome? Se D’us a tudo vê, ele nos olha ao tomar banho?

O olhar de D’us era um assalto e suas imagens me encharcavam a memória. D’us não gostava dos mornos e por isso me vinguei com excessivo calor. Joguei ácido corrosivo para me abster da fé. Mesmo lhe odiando, desejava seu amor.

Esta foi a neurose primária. Depois do olhar de D’us, busquei o olhar de Freud no quadro em frente ao divã. Velho safado, aquele charuto na mão, me falta um caralho, coisa nenhuma.

O olhar dos homens era tão condicionante do nosso viver, que resolvi apostar na mesma moeda: os olhos, que por sorte da natureza calharam de ser tão bonitos que jamais passaram batido. Haviam me dito que era olhos de lince, de mel, de onça, de arrebentação e também de prato duralex. Prato duralex era minha categoria preferida, só não sabia se era raso ou fundo de fome.

O que pode o olhar das mulheres sobre um outro? Acho que essa era a questão da maior importância de todo o século XXI e além: haverá ainda um outro a que olhar agora que já pintamos as paredes com o sangue das pernas e todos eles se eximiram do cheiro?

Acaso saberiam parir?

O corpo feminino, o mais sólido dos alicerces da cultura, e no entanto a única engenhosidade na civilização capaz de nos aproximar da natureza quando já não restar mais fim do mundo. Qual o bicho que sangra todo mês e não morre?

Meu menino está crescendo devagar.  As questões que nos rondam são tão atuais como as de antigamente. No banho, ele me procura saber.

Cadê, mamãe?

Ele me abre as pernas e tenta pegar em vão os pequenos coágulos que escorrem junto d’água. – Mamãe, machucou? Por que tá saindo sangue?

Eu lhe digo que tenho dentro umas águas muito vermelhas, embora ainda me faltem as palavras exatas para precisar tamanha exatidão, enquanto D’us diz que vomitará os mornos suspensos sob a dúvida.

Não saberia nomear os mistérios à criança que indaga as origens. Poderia falar de coisas mais que divinas caídas do céu, mas o menino um dia será homem e haverá de saber que os homens nascem das mulheres, e nunca o contrário.

É preciso que ele saiba que todo rasgo é o início do fim. É preciso que ele saiba sim, pois a infância é eterna, as crianças é que são mortais. Uma palavra indevida e ali estamos cravadas para todo sempre. Hesito suspensa no azulejo azul.

A mamãe sangra para mover o mundo. Te conto.

A história do mundo é velha e no entanto sempre torna ao mesmo lugar.

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