Fome de tudo

Naquele ano o calor veio tarde, mas arrebatador. Voltamos à vida depois de uma pandemia acrescida da vontade de morte, embora no fundo toda gente soubesse que da morte não há volta possível. E foram tantas.

O caixão de uma criança não é coisa que se esqueça assim fácil. O tempo é um princípio ativo que marca na pele. Toda memória é uma cicatriz.

O mundo beirava às margens do fim. Eram umas nuvens de poeira comendo nossa  cidade, um pôr do sol esfumado, parecia uma pintura expressionista.

As abelhas corriam o risco de extinção, mas naquela primavera gozaram como nunca a doçura das flores. Tudo parecia um pouco mais do que era.

Lembro que a única vantagem daqueles panos era a possibilidade de cantar sozinha. O rosto coberto foi uma inibição protetiva que se estendeu por vários anos seguidos, sem que soubéssemos ao certo se era hábito ou precaução.

Fevereiro voltou à costumeira alegria de sempre e em Salvador sentia na pele o cansaço de tudo. A mãe de santo me disse que barriga vazia é uma espécie de desproteção, pois muitas coisas brotam das ruas e todas elas demandam um corpo.

O carnaval enfim foi possível e passou por mim o bloco a máscara caiu.

Foi preciso um par de olhos para ver de perto a passagem e dar conta de que

as coisas não acabam em definitivo e que ainda assim é possível fundar recomeços.

Exu me disse que o tempo não é definitivo, tudo está contido dentro de tudo e em cada fim há um novo princípio. Com exu não se discute.

A praga surgiu da pressa. Depois dela, seguiu a urgência.

Era fome de vida em um mundo voraz.

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