Escandalosamente ordinário

“Prudentópolis está de portas abertas aos nossos irmãos ucranianos. Temos o mesmo sangue, somos todos o mesmo povo“, disse o presidente da Sociedade Brasileira da Ucrânia.

A fala de Adalberto Kravchenko não ecoou convincente. A palavra povo parecia oca por dentro, algo tão palpável quanto tenha sido a existência da Bósnia Herzegovina.

O homem falava em um caminhão de som, assistido por seis pessoas na praça José Melnyk.

Grita-se povo, ninguém aparece.

E no entanto, no mesmo dia em que uma bomba explodia em Khárkiv, em Prudentópolis, Ermínia Tkachuk cozinhava sua dor, atenta ao barulho da televisão.

No quinto dia de confronto, o jornal britânico Daily Mail publica a manchete: Brasil festeja carnaval enquanto o resto do mundo protesta contra a guerra. No Instagram, 23.678 comentários.

“ Se rolasse carnaval no leste europeu, não tinha treta.”

“ Por que ninguém me chamou para a suruba do Boris Johnson?”

“ América Latina bode expiatório da culpa.”

“ É que comentar nessa rede ajuda muito… kkk.”

“ Rio de Janeiro dando lição.”

A percepção mais sagaz, contudo, foi enunciada por Roberto, o taxista mais carismático da praça Tiradentes: “O GNV vai bater em oito reais, um monte de gente com fome e diz que a guerra é lá na Ucrânia.”

Taxistas, até onde se sabe, sempre foram termômetros do social, ainda que sem um pingo de prestígio. 

Na mesma linha de raciocínio, a pesquisadora franco-brasileira Alice Gagnon publica a tese “Por que não a guerra?  Uma análise de linguagem envolvendo a cobertura jornalística das chacinas no Rio de Janeiro”, na qual discorre sobre a supressão da palavra guerra, lá onde milicianos matam mais do que o exército russo instalado na Síria. Segundo Alice, a inutilização da palavra servia à banalização da barbárie.

Há um século e uns tantos anos, Franz registrou em seu diário: “Hoje a Alemanha declarou guerra à Rússia, à tarde fui nadar.”

Diários são imorais por natureza, mas naquele dois de agosto de mil novecentos e catorze,  escancarou-se o fato de que o escândalo não são as bombas, o barulho ou os velhos despedaçados: a banalidade é que é obscena, e Franz, muito tranquilo de si, optava por refrescar-se nas piscinas públicas de Ostrava sempre que o sol permitia.

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