Cidade submersa

Chuva que Deus manda, chuva pra todo lado. Os canoeiros cruzam a avenida na contracorrente. Agora os peixes vão parar na pista do aeroporto: a cidade de Ilhéus está ilhada. Antes fosse estado de Alagoas, mas é Ilhéus submersa, em vias de afogamento. Respirar embaixo d’água, eu não consigo. Respiro um fiapinho e retenho o ar.

Os cachorros no telhado das casas, não há bombeiro que baste. Os cachorros vão ficar latindo nas telhas até que a água desça.

Paciência pra ver os destroços da gente. Televisão paga na prestação baratinha.

Se a mãe chora, perigo da gente ficar preso aqui. Tem que ser rápido, muito rápido, e por isso a mãe não chora. Ela vai catando o que pode, umas coisas que têm carinho.

O helicóptero barulhento não escuta ninguém. Sobra água, faltava abastecimento. Tem uma barragem na beira do limite. As luzes também hesitam em falhar, ficam caindo vez em quando, como se a cidade inteira estivesse pra afundar, enquanto o presidente pesca em alto mar.

A mãe disse que nunca chove assim em dezembro, mas no finalzinho de 67, saiu da casa carregada num cesto passado de mão em mão até chegar no barco. A vó não sabia nadar, a mãe era um bebezinho. Ela conta de uma história que nem lembra, mas que a vó recorda muito bem. De certo que a vida da gente é assim, uma história que começa bem antes de começar.

Desde sempre moramos na beira do rio. Não é que não aprendemos a lição. É que o rio dá de comer e alegria pros meninos daqui. Sou filho e neto de pescador. Sou pequeno, mas tenho minha própria jangada. Tinha.

A jangada não aguentou. A correnteza levou o ônibus, também desfez minha jangada.

Ainda bem que existem os barqueiros. Ainda bem que existe a igreja, porque foi no alto do morro da cruz que todo mundo se abrigou.

Lá na igreja estão os velhos quase mortos de espanto. Eles deitam no colchonete fino e ficam ali calados, descansando. Descansar também é uma forma de passar o tempo. As crianças todas gripadas e não se sabe se é covid, se é gripe ou efeito de aguaceira.

Por que agora, agora mesmo, vai fazer o quê?

Só o tempo ajeita as coisas no lugar.

Não sei como a vó fez quando perdeu tudo e mais um filho naquela enchente.

Um dia, dois, três, ajuda dos vizinhos. Amanhã já é outro ano, mas nenhuma estrela vai explodir barulhenta.

A mãe só foi chorar agora. Antes disso, não teve tempo.

A mãe não chora de desgraça nem dá grito à toa. Criada na beira do rio, ela sabe:

a água que sobe com força, também costuma descer suave.

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