O barulhão, a poeira e a saudade

Quando o pontinho no céu aparecia, era hora de tirar a roupa do varal, fechar a casa e olhar, da janela, aquela bagunça

A poeira era implacável, especialmente nos dias mais secos. O pó era tanto que não havia roupa no varal que escapasse. Lavou, sujou. O único jeito era esperar pelo domingo e lavar e secar tudo de uma vez. Só assim mesmo para evitar o poeirão que vinha ali do lado, a poucos metros, sempre acompanhado de um barulho ensurdecedor, que deixava a cachorrada doida.

Domingo era sinônimo de sossego. Pelo menos um dia de paz na semana. Pelo menos um dia sem o grito daqueles dois motores que levantavam a poeira vermelha e criavam uma nuvem que demorava alguns minutos para sumir. Era o único dia que os aviões não apareciam e que a vida seguia mais tranquila.

Era bom mesmo aproveitar o domingo, porque nos primeiros minutos da manhã de segunda-feira, a paz acabava. Lá longe já se ouvia o barulho. Ainda bem baixinho, mas já avisava que logo ganharia corpo. E aquele pontinho no céu, quase invisível, de repente crescia. E não havia muito tempo. Era correr para o quintal e tirar a roupa do varal. E fechar as janelas, mesmo com o calor já aparecendo.

Tudo fechado, tudo dentro de casa, agora era esperar o bichão chegar, vendo da janela. E chegava, assim, quase do nada. Aquele pedaço de metal barulhento vinha quase na direção da casa, mas chegando pertinho, ufa, ia na direção certa, na direção daquele campo aberto de terra, só terra vermelha.

Quase na hora de encostar no chão, de repente um silêncio. Durava pouco, uns três segundos, no máximo. E aí a borracha tocava a terra. O barulho voltava, agora rodando ao contrário. E junto, claro, a poeira. Jogada para trás e para cima, ia formando a nuvem que se estendia até o ponto onde parava, uns 500 metros mais ou menos.

O metal dava a volta e logo parava na frente da casinha de madeira. Sempre tinha alguém esperando para colocar a madeira nas rodas. Vai que o bichão sai andando sozinho. Melhor não arriscar. Paradinho, assim, dava uns 15 minutos de folga para os vizinhos.

E do avião saiam as pessoas. Se estavam limpas, logo eram atacadas pela nuvem que ainda pairava por ali. Vinha, certamente, aquela certeza de que chegou lá mesmo. Era lá mesmo. Não havia engano.

Agora o silêncio dos motores era substituído por uma certa gritaria fina. Eram as crianças que chegavam e ficavam em volta do avião. Alguns davam uns chutes nos pneus e logo sentiam que, sim, eram duros. Levavam uma bronca do piloto que já estava do lado de fora para receber os próximos passageiros. A pirralhada não sossegava. Alguns tentavam subir no avião, mas logo eram repreendidos pelo funcionário da empresa. Sai daqui!

Aquilo parecia horário de rush de cidade grande, bem diferente daquela. Surgia gente de tudo quanto é lado. Saía gente do avião, entrava gente. De um lado do areião vinha mais, do outro também.

O desassossego, pelo menos, durava pouco. Era só o tempo de descerem os passageiros, subirem os passageiros, saírem as malas, entrarem as malas. Deu esse tempo e o piloto já estava de volta à cabine e a porta do avião era fechada. Sem cerimônia, tudo rápido demais para se dar conta.

Mas quando a porta fechava, era contar uns 10 dedos e, pronto, a gritaria era trocada pelo barulho do avião. Ligaram os motores. Era a deixa para se preparar para um novo poeirão, dessa vez muito maior. Aos poucos o avião ia, devagar, até a ponta do campão de terra. Parecia distante, mas logo passaria na frente.

Paradinho lá. E de repente o barulho chegava com uma vibração nas garrafas da estante. No fundo, a poeira começava a subir. E vinha vindo. Vindo. E o pedaço de metal crescendo. E quase na frente, o bicho levantava, voava, deixando o pó para quem estava aqui no chão.

Agora ele saía enorme e ia diminuindo. Às vezes virava para a direita, às vezes para a esquerda. Deve ser para onde ele ia. E ia sumindo, virando um só pontinho, da mesma forma que o barulho se aquietava.

O silêncio voltava. Mas não por muito tempo. Logo chegaria outro, e outro, e outro. Nem parecia que aqui era quase o fim do mundo, longe de tudo, de onde só se via café e café. Lá de cima devia parecer ainda mais infinito, com café e terra vermelha coexistindo. Daqui era só isso, um chega e vai sem fim.

Isso durou alguns anos, talvez uns dez. Aos poucos outros dias se juntavam ao domingo e o sossego durava mais. De repente, eram todos os dias de sossego. Eles não vinham mais. Não faziam mais barulho, não levantavam mais poeira, não traziam nem levavam gente. Que pena. Era bom quando tinha um aeroporto, ou quase isso, por aqui. Vai fazer falta.

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