Uma história sobre indiferença e comoção: um bar destruído, uma explosão no Líbano e uma pandemia desgovernada no Brasil

Queria poder contar as histórias dos lugares que foram devastados pelo fogo, pelo vírus, pela crise. Dos lugares incríveis que eu conheço que vão simplesmente deixar de existir. Dos mortos que não são números, mas que são tantos que eu nem sei bem como interpretar isso tudo

Sentei para escrever esse texto para o Plural, queria escrever sobre uma bartender que conheci em Amsterdã e foi trabalhar no Líbano. O bar que ela trabalhava, o Eletric Bing Sutt, foi completamente destruído pela explosão de Beirute.

Eu viajei com meu sócio, meu companheiro de vida e de coqueteleiras há pouco mais de 1 ano. Fomos para “as europas” pela minha primeira vez. Como somos donos de bar, aproveitamos a viagem para conhecer alguns bares que estão na lista de melhores do mundo. Fizemos isso do jeito como somos, dois pé-rapados.

A gente selecionou bem onde ia gastar nossos parcos euros porque não tinha como sair para beber em todos os bares. Ia ser muito caro. Calcule que qualquer água é 5 euros. Faz a conversão. Tudo fica muito caro. O Brasil tem apenas 3 bares na lista dos 100 melhores do mundo, um ranking mundial feito anualmente por uma instituição dedicada a isso, com jurados especialistas no mundo todo. Queríamos tentar conhecer o máximo que pudéssemos.

Para conseguir ir em mais bares possíveis, nós pedíamos um drink, dividíamos em 2 e pedíamos muitas águas de cortesia. Mas nos sentávamos no balcão. Se o bar tem um balcão com cadeira, o melhor lugar do bar é no balcão. Você vê seu drink ser feito, troca umas ideias com o ou a bartender, vê o que acontece por dentro do balcão. Aliás, inclusive, dou essa dica aí para quem curte tomar uns tragos. Sente no balcão se o bar tem balcão. Se o bartender vai com as tuas fuças, ele dá cortesia, dá prova de bebida, te conta umas lorotas e umas história de bebida e de cliente. Infelizmente agora na pandemia estamos sem bar, sem alegria, sem balcão.

Aprendi muito sobre bar no balcão dos outros. De todos que já me sentei. O meu bar infelizmente não tem balcão para sentar porque nossa casa é muito antiga e não foi pensada para ser um bar, apesar de ter sido o primeiro bar de coquetelaria de Curitiba naquele ponto. Era uma casa de família, depois uma loja de chocolate, depois um bar, depois vim eu, com outro bar.

Antes da pandemia, íamos começar a realizar esse sonho de ter um balcão no centro do bar, com a atenção que ele merece. Mas ainda não vai dar para ter banquetas. Teria que colocar mais vigas na casa, abrir paredes de fundação. É muito caro. Hoje o sonho mudou, o sonho é manter a casa viva com toda a nossa equipe. O balcão a gente ergue quando for o tempo. Lá no bar, está tudo meio destruído, entre o final da obra que não terminamos e o novo negócio que teve que nascer para viver de entrega, de portas fechadas.

Um dos bares que fomos naquela viagem era em Amsterdã, era o bar do campeão mundial de coquetelaria da Bacardi, Erick Van Beek.  O TweentySeven. A proposta do campeonato é que o bartender faça uma criação tão importante que deixe um legado. Fomos em busca do drink que ganhou o campeonato. Entramos e partimos direto para as banquetas no balcão. Lá fomos tão bem recebidos que acabamos cedendo na nossa estratégia de 1 drink, 1 bar. Tomamos 2. Nos trataram tão bem quanto qualquer outro turista que fosse lá e gastasse muitos euros. Dividiram segredos de preparos dos drinks que tomamos, deram provas de outros que sobraram no restinho da coqueteleira. Foram muito, muito simpáticos.

E voltamos no dia seguinte porque o bar era incrível, a equipe era incrível, tudo era muito bom. Participamos de gaiatos da comemoração do último dia de trabalho da Rebecca. Ela estava saindo de Amsterdã para trabalhar no bar n.º 46 na lista dos melhores do mundo, no Líbano, justamente o Eletric. Seguimos a carreira dela desde que participamos da sua festinha de despedida no balcão do bar.

Os bares do mundo todo hoje estão se solidarizando com o Eletric Bing Sutt. Aqui no Brasil temos perdas demais para que essa história ganhe um espaço. Eu não acho que sou capaz de transmitir essa dor de ver 200 km sendo devastados em poucos segundos.

Nem sei se sou capaz de transmitir a dor das 100 mil vidas que perdemos aqui. Mas essa dor de ver algo ser totalmente devastado em poucos segundos eu conheço. Meus pais tinham uma lojinha que pegou fogo. Eu morava a algumas quadras dali. Uma bobeira da Copel num serviço deu curto na rede elétrica que era meio velha. O fogo tomou tudo. Foram precisos 2 carros de bombeiros para apagar o incêndio. Eu levei minha mãe de carro até a loja para ver o incêndio e se tudo estava bem. Bati o carro 1 quadra perto da loja por nervosismo.

A loja nunca foi reconstruída. Não tinha seguro. Quando acontece um incêndio em um imóvel o contrato de aluguel é suspenso. Perdemos o ponto. Trabalhavam umas 10 pessoas lá. Algumas tiveram uma leve intoxicação, mas ainda bem, todos vivos. Eu queria sentar aqui e escrever um pouco sobre essa sensação de ver tudo ser destruído em poucos segundos. De ver sabe-se lá quantos lugares, casa, lojinhas, bares, comércios, serem completamente devastados. Mas não consigo. Peço perdão, Rebecca. É tanta perda acontecendo ao mesmo tempo que eu já nem sei como transmitir isso, sentir isso. 5 mil pessoas feridas, 137 mortos em segundos em uma explosão em Beirute.

Por aqui, 100 mil brasileiros mortos em 5 meses. É um Couto Pereira, mais uma Arena da Baixada e uma Vila Capanema de gente, aproximadamente. Enquanto eu me sento aqui para escrever esse texto, na Globo News passa a reprise do Fantástico. A reportagem pergunta por que algumas tragédias causam comoção e outras indiferença. Cenas do atentado de 11 de setembro, de Hiroshima, de Nagasaki.

Beirute teve uma destruição num raio de 200 km, entre mortos, feridos, sobreviventes. Nossa tragédia é de um raio 2 km, mas todos mortos.

Para tentar lutar contra a indiferença, a Agência Lupa fez um trabalho primoroso de investigação e visualização de dados, que você consegue ver em um mapa qual seria o raio de destruição caso os nossos 100 mil mortos pela pandemia fossem seus vizinhos (https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/epicentro/). Aqui da minha casa no centro, a destruição dos nossos mortos por Covid-19 mataria todas as pessoas em um raio de 2 quilômetros ao meu redor. Iria da Arena da Baixada até o Centro Cívico, do Alto da XV até as Mercês.

Eu queria poder escrever um texto que contasse a dor de perder uma pessoa que se ama. A dor de perder tudo o que você tem. A dor de perder milhares de vizinhos. A dor de viver uma pandemia. A dor desse sentimento que senti de ver pegar fogo um lugar importante para mim ser multiplicada por milhares de lugares. A dor de perder uma pessoa. A dor de perder 100 mil pessoas. A dor de perder 729.351 pessoas.

Eu queria contar a história da Rebecca e do Eletric Bing Sutt destruído. Do Bar do Pudim, da Rua Pagu, do Attomic Core, de tantos lugares que vão apagar as luzes, olhos que serão fechados para sempre. Da dor que gera comoção e da dor que não gera, mas que dói. Queria poder contar as histórias dos lugares que foram devastados pelo fogo, pelo vírus, pela crise. Dos lugares incríveis que eu conheço que vão simplesmente deixar de existir. Dos mortos que não são números, mas que são tantos que eu nem sei bem como interpretar isso tudo. Das pessoas incríveis que não conheci. Eu não tenho memória RAM para processar essa dor. É muita dor. É uma dor que não dá para entender. O sentimento é aquele apito no ouvido depois de uma explosão. Eu me sinto um ruído sem sintonia de rádio. Um chiado.

Esse não é o texto que eu gostaria de escrever. Eu sinto muito Rebecca.

Mas o que eu deveria, eu não consigo. Nem meu melhor texto vai dar dimensão dessa dor. As histórias das Rebeccas, Joões, Josés que vão ficando para trás. Dos balcões vazios e dos destroços do mundo. Fica só a destruição e a esperança da reconstrução depois da devastação. Não tenho texto para essas tantas dores. Tudo vai ficando vazio.

E em silêncio.

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