Que Contardo Calligaris viva para sempre

Psicanalista dizia que as ficções são importantes para termos contato com vidas que jamais farão parte da nossa

Há algum tempo tenho em mente escrever sobre o papel das ficções nas nossas vidas. O que me moveu para esse tema foi novamente ter vindo à tona, mês passado, a tentativa de “reescrever” a obra de Monteiro Lobato, para que ela se adaptasse ao nosso tempo. Isso porque Lobato tem uma obra extremamente contestada quando se evidencia a forma como ele retratava questões sociais e raciais. Confesso que sempre foi muito difícil escolher um lado quanto a isso, porque há argumentos plausíveis entre os defensores dessa ideia e entre os contrários também.

No entanto, ao saber da morte de Contardo Calligaris, na última terça (30), esse tema veio novamente à minha mente, porque me lembrei de um texto dele, que sempre trabalho em aula, chamado “Para que servem as ficções”, o qual foi responsável por me fazer decidir de vez em qual lado eu deveria estar. Nele, o psicanalista explica como as ficções são importantes para reconhecermos nossos privilégios, espelharmos nossa realidade e, principalmente, para termos contato com vidas que jamais farão parte da nossa. Isso nos faz crescer e nos torna pessoas que procuram ser melhores em uma sociedade cada vez mais egoísta. 

Monteiro Lobato tem traços extremamente racistas em suas histórias. Crédito da foto: arquivo.

O texto de Calligaris é incrível (como todos dele, que fará muita falta) e me fez entender que reescrever Monteiro Lobato ou qualquer outro autor ou autora é um verdadeiro apagamento de realidades extremamente importantes com as quais temos que ter contato. E isso só é possível a partir das ficções. Só elas mostram, de forma sutil, escancarada, fantasiosa e até lúdica, qual era a realidade no momento em que foram escritas; que sociedade era aquela e como se comportava. 

Monteiro Lobato tem traços extremamente racistas em suas histórias. Há personagens, falas e situações completamente humilhantes, especialmente para Tia Anastácia, emblemática cozinheira da turma do Sítio. Deveria, portanto, Monteiro Lobato ser “reescrito” para que as crianças de hoje fossem poupadas de todo seu racismo? É bastante evidente que apagar esse traço da literatura de Lobato é também apagar uma parte trágica da nossa história, que, infelizmente, perpetua-se até hoje na sociedade. As crianças não devem simplesmente ler uma história diferente; elas devem conhecer a obra real e saber analisá-la à luz da atualidade, na qual, ainda bem, falamos de quão importante é o combate ao racismo e como é essencial conhecer nossa história para entender como tudo isso aconteceu. Tia Anastácia nos conta isso e jamais deve ser silenciada. Utilizando a incrível metáfora de Umberto Eco para histórias narradas, devemos pegar nossas crianças pelas mãos e fazê-las caminhar pelos “bosques” da ficção. Temos que caminhar por esse bosque ainda que ele seja sombrio e repugnante, pois só esse lugar da literatura será capaz de despertar nossa capacidade de ver a realidade a partir de uma lente diferente e mais sensível – a da ficção.

A atriz Jacira Sampaio fez o papel de Tia Anastácia na primeira versão de O Sítio do Pica-Pau Amarelo, na TV Globo, nos anos 1970. Crédito da foto: reprodução.

Obrigada, Contardo Calligaris, por aquele texto publicado na Folha de S.Paulo no longínquo ano de 2007. Tenho certeza de que eu fui uma das milhares de pessoas que tiveram paradigmas mudados a partir das suas palavras. Que suas ideias ecoem para sempre.


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