Trabalhar em casa não é um bom negócio

O mundo profissional pede relações humanas e não isolamentos confortáveis

O trabalho formal em casa é um dos assuntos em voga nesse momento de reclusão forçada.  Prós e contras, exemplos aqui e ali, organização de rotinas e motivações diversas são matérias obrigatórias nos veículos de comunicação pelo globo.

Quando o mercado de computadores pessoais emergiu no final dos anos 1970, com o avanço tecnológico da Apple e seu “Apple II”, a maneira de trabalhar modificou-se. Com a chegada da internet nos anos 1990 no Brasil especificamente, os prognósticos foram aterradores. A extinção de postos de trabalhos e de algumas profissões acontecia sem fazer alarde.

Hoje o computador é o “escritório”: possui “área de trabalho”, “pastas”, “arquivos”, “seguranças contra invasores”, “telefone”, “jornais e televisão” e até mesmo uma lixeira. Nomenclaturas e funcionalidades criadas para facilitar a implementação de novas burocracias, que fornecem justificativas para o aprimoramento da compartimentalização do fazer e do saber, tornando o trabalho tecnicista em níveis desnecessários.

Especulações pós-covid-19 afirmam que trabalhar em casa não sinalizará a morte do escritório, apenas levará os empresários a “adotar a flexibilidade para o bem maior dos negócios e das pessoas”. E a melhor das futurologias dizia que “muitas empresas desenvolveriam um relacionamento mais saudável com seus funcionários, promovendo até mesmo uma maior inclusão social”.

Além da generalização com muita imaginação, uma Shangri-lá nasceria em cada canto do mundo. Claro, talvez em 3458 essa questão esteja resolvida. Um adendo fora do contexto, mas importante: lembrar que todos os filmes de ficção espacial ou distópica, exibem uma realidade sem muitas esperanças e o contato social é motivo de perigo permanente. Comportamentos desenvolvidos pela valorização das máquinas e do individualismo como valor de sobrevivência da espécie.

Se você colocar no Google a frase “trabalhar em casa”, aparecerão inúmeras fotos que não traduzem a realidade. São verdadeiras obras primas do marketing da vida de solteiro (a) perfeita, já realizado (a) ainda jovem, visto a qualidade de suas residências. Raras são as fotos com mãe, pai e irmão. Quando aparece um bebê, ele está sempre no colo, seguro por uma das mãos, enquanto a outra “manipula” o notebook. Pura imaginação positiva da comunicação de massa.

Pregão eletrônico na Bovespa. Foto: Germano Lüders 16/09/2016

Vamos separar o desejo (ou sonho) de trabalhar em casa, com uma transferência forçada de suas obrigações profissionais para o ambiente particular. No Brasil, trabalhar na sala, na cozinha ou na garagem, não é novidade: marmitex são feitos assim, cartomantes atendem dessa maneira, costureiras salvam nossos fundilhos, professores (as) dão aula de tudo etc. Os exemplos estão aí para todos verem há anos, muito antes do vírus, e a palavra “remoto” era sinônimo de controle para mudança dos canais de televisão.

Ainda não é possível afirmar se trabalhar em casa por livre escolha proporciona chegar mais perto de Deus ou do Diabo, mas é certo que a responsabilidade e pressões comuns não irão dissipar-se. Quando a normalidade cotidiana se restabelecer integralmente, o trabalho remoto terá a mesma importância de sempre: quem pode, continuará a trabalhar e produzir, e quem não pode, o sonho é o remédio.

Embora algumas empresas possam ter políticas bem-intencionadas de “trabalho flexíveis” para pais com filhos recém-nascidos ou com necessidades especiais, para cuidar de familiares em condição enferma, elas não são a regra no mundo da produção. São exceções existentes por força de leis, e não uma compreensão vinda de almas bem-sucedidas que desejam mais conforto à vida dos seus profissionais. Percebemos que “os privilégios” são oferecidos mediante o aumento de responsabilidade na vida particular. Chega a ser uma piada de mau gosto, principalmente para os brasileiros.

O mundo é da produção, no interior ou exterior de qualquer lugar. A máquina que nos fornece conforto e também o medo de perdê-lo não deve parar.

Existem várias preocupações e limitações em se implantar o fazer remoto no ambiente residencial de maneira mais ampla em várias categorias.

O primeiro limitador é a questão do controle da produtividade. Como é possível na prática manter a produção, com seu objetivo pragmático em aumentar, de todas maneiras disponíveis, mantendo os atuais ganhos e ampliá-los? Esse é o objetivo primordial de qualquer empresa: produzir lucro em menos tempo, com menos pessoas e enriquecer seus investidores.

Rígida, criativa ou flexível, não importa o nome, ainda assim o funcionário terá que mostrar seu valor carregando um peso maior: ter o conforto que os outro não têm. Portanto, o funcionário (ou colaborador – palavra suave para “empregado”) será sempre o primeiro a ser avaliado em suas funções.

A segunda questão é a interação social. Pesquisas e mais pesquisas já mostraram que a sociabilidade produz a motivação da competição, que por sua vez cria maiores possibilidades de se manter no emprego e, portanto, está produzindo o lucro correspondente. As amizades e o network são importantes sem dúvida, entretanto não são elas que mantêm um emprego (ou posto de trabalho) em nenhuma instância.

Como assegurar que uma equipe inteira esteja realmente trabalhando oito horas por dia no mínimo, todos os dias da semana, como é o que se espera? O emprego formal é o sustentáculo da produção de riqueza. É o que faz com que a vida social seja organizada. As particularidades podem ser analisadas a partir das centenas de setores e suas particularidades.

Em tese, o patrão não vendo seu funcionário no ambiente de trabalho… ele não está trabalhando. Como mudar um pensamento que provou ser o construtor do mundo? Além disso, o funcionário que, por qualquer razão, possa trabalhar em sua residência (ou parque), e seu colega por outros motivos não pode vivenciar isso, este se sentirá ao longo tempo.

Nem na época da Apple com Steve Jobs, com toda sua imagem de empresa do futuro, houve facilidade, ou melhor, facilidades.  Ele exigia que todos trabalhassem juntos numa única sala, incentivando a equipe a se entender e fazer aquilo que ele impusesse custe o que custasse. A interação, muitas vezes sob pressão, produziu os melhores produtos já vistos até então no mundo tecnológico do consumo de massa. Vendo a Apple hoje, quem irá contrariar Steve Jobs e seus métodos?

É um erro subestimar a necessidade de contato direto com o chão do escritório.

Há uma “nobre ilusão” que o conforto material adquirido, ou o sonho de alcançá-lo será produzido por pessoas que trabalham com cargas horárias menores das já estabelecidas. Isso não irá acontecer. O constante crescimento populacional não propicia pensamentos como esse para que sejam aplicados de maneira massiva.

Imaginem toda a literatura criada para organizar, treinar, ensinar e enriquecer o trabalho moderno indo para o ralo? Todos os conceitos criados por inúmeros profissionais ao longo de 40 anos, transformando-os em ídolos no meio empresarial, deixando de ter importância? Da noite para o dia ficaram obsoletos. Os pensadores do comportamento social e economistas têm a obrigação de colocar a realidade em voga. O mundo teria que se reinventar como um todo ao mesmo tempo.

O trabalho em casa é um assunto, entre tantos relacionados com a covid-19. As empresas não têm escolha agora a não ser fazê-lo funcionar.

A razão para isso é simples: quando os funcionários se engajam a lealdade aparece, a produtividade se mantém e a lucratividade aumenta. Empresas com altas taxas de rotatividade de funcionários sofrem com o baixo envolvimento dos mesmos. Para muitos, a empresa substitui a família, em vários sentidos, e como tal propicia sentido para vida. Os homens desde sempre saem para caçar. Sem o contato profissional cara a cara, o mundo acaba, simples assim. Um desastre para milhões em detrimento do conforto de milhares.

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