São pessoas como todas as outras

A América queima seus direitos civis, colocando na pauta questões históricas insolúveis

Numa questão de minutos, os Estados Unidos abriram (mais uma vez) publicamente a ferida mais longeva desde sua criação como nação, a do ódio racial. Alguns anglo-saxões americanos ainda não suportam a presença de afro-americanos perto, ou até mesmo, dentro “de seu território”, mesmo já passados 157 anos da libertação, por lei (sempre), dos escravos por Abraham Lincoln em 1863. Ainda que um presidente afro-americano tenha sido eleito, o repúdio pela origem africana prevalece sem constrangimento algum pelos racistas daquele país. Vide o último assassinato público, cometido pela força da lei e da ordem, nos últimos dias, que assina de maneira incontestável o fracasso da sociedade americana como promotora de justiça e igualdade para todos.

Para contextualizar, numa população de 328 milhões, a camada afro-americana representa aproximadamente 40 milhões de pessoas (2019), sendo 246 milhões de brancos, e o restante distribuídos (segundo o padrão e classificação americano) em hispânicos, nativos, asiáticos e etnias.

Com muita coragem, consciência, força e união, foi a partir do século 20, que os afro-americanos começam a ocupar o seu lugar por direito na sociedade, chamando a atenção (e até mesmo dominando) em áreas que formam o consciente coletivo de qualquer nação: as artes, o esporte e a política. Sabedores da história aviltosa de seus antepassados, a comunidade afro-americana inicia-a sua trajetória de luta pela preservação de suas identidades e vidas; bem como por direitos e oportunidades civis iguais aos dos anglo-saxões. Uma contenda que permanece, e se faz necessária, visto o último homicídio público promovido pela lei.

A América desistiu de bater, e aceitou que, em seus domínios haviam diamantes, ouro e pérolas negras aos montes. Homens e mulheres que são (vivos ou não) forças da natureza, em suas áreas de atuação na sociedade, muitos sendo referência como “o (a) melhor” de todos os tempos. Que soco sem dúvida!

Na seara política, W.E.B. du Bois, Martin Luther King, Rosa Parks, Malcolm X e os Panteras Negras e sua Angela Davis, cada qual a seu modo, pregaram (e até mesmo lutaram) pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Seus discursos e posturas até o hoje são referências em qualquer debate sobre direitos civis, sejam as frases ditas, uma estampa em camiseta, um pôster… etc. O Black Lives Matter surge nos tempos atuais como o grupo mais influente de protesto civil desde os Black Panthers. Embora uma de suas metas principais seja acabar com a violência sofrida pelo coletivo de cor (termo que agrupa as diversas minorias não brancas). O #BLM pede igualdade para todos, em todos os campos e lugares dentro do país, promovendo múltiplos protestos sincronizados muitas vezes.

A campanha eleitoral de Obama transformou-se em case, estudado desde então pelo mundo afora. Nas entrevistas e discursos, teve o cuidado de não focar no assunto “raça”, e afirmar que seria o presidente de todos os americanos e pronto. Ao ser eleito, o primeiro presidente afro-americano da história simbolizava muito além do poder político que obtivera do país, mas também a resistência de todo uma população que passou boa parte da história recente condenada à uma morte lenta. Com seu carisma, transformou-se em um produto pop de uma nova América, até então, ofuscando em várias ocasiões sua condução da administração como mandatário do país.

Angela Davis.

Da humilhação nos campos à sobrevivência das brutalidades dos clãs. Dos dolorosos choros nas igrejas ao medo de voltar para casa, invitaram a comunidade afro-americana, ou negra para algumas vertentes, a aliar todas as suas frustrações e fúrias para um só objetivo: vamos sobreviver, viver e ensinar, independentemente de todos os obstáculos.

De maneira objetiva e factual: sem os afro-americanos, não teríamos no século 20 a riqueza do sentir na pele, nos ouvidos e no coração, o poder de uma alma repleta de som, fúria e autenticidade. A cultura popular americana que nos influencia (molda alguma vezes) desde os anos 1950, deve muito a esse povo. Impossível não citar a música nesse ambiente.

Sem o cântico na labuta da colheita do início do século passado, não teríamos o Blues, Jazz, Rock and roll, muito menos o RAP. Imaginem o mundo branco anglo-saxão sem Elvis, Rolling Stones, Janis Joplin, Eric Clapton… White Stripes? Todos, e tantos outros 100% influenciados pelo poder negro do Ser autêntico e visceral. São tantos os nomes e estilos a serem citados, que a lista ficaria extensa e (sem a música rolando) entediante. Entretanto, citar alguns não faz mal a ninguém. No momento dessa escrita, eles estarão fazendo um sinal de “ok” para mim, sabedores que essa é uma lista de consideração pessoal:

Miles Davis, Thelonious Monk, John Coltrane, um trio arrasa quarteirão no Jazz. Little Richard, James Brown, Michael Jackson… paradigmas em presença de palco. Nina Simone, Aretha Franklin, Tina Turner são professoras de milhares de calouros na televisão. Isaac Hayes, Marvin Gaye, Prince… onde o corpo do outro é o essencial. Como eu disse, a lista completa é impossível, dado ao fato de serem a estrutura de boa parte da música popular criada na América Pós-Segunda Guerra, e exposta para além de suas fronteiras, graças a visão capitalista americana.

Não existe um só país no mundo que não absorveu a cultura negra, ou afro-americana, popular americana, direta ou indiretamente. É um fato. A mentalidade da produção e venda de cultura como produto de massa, que a América possui, não somente traz dividendo considerais para seu PIB, como, também, mantêm a memória de quem eles são sempre viva. Difícil competir com qualidade, originalidade e agressividade ao mesmo tempo.

Por falar em agressividade… Muhammad Ali (dança, força e personalidade), Mike Tyson (fúria e ancestralidade), Floyd Mayweather (renovação e respeito pela tradição). O que falar, sem pieguices, desses campeões de audiência, e de seguidores sem o mesmo punch. Jesse Owens, Michael Jordan, Serena Williams são “milagres” e, como tal, difíceis de serem explicados racionalmente. A lista é enorme. Lembrando que Muhammad Ali se recusou a servir na guerra do Vietnã e parou uma guerra no Zaire. Não é para qualquer um, e não foi mesmo.

No cinema temos Gordon Parks (um dos professores de Tarantino), Spike Lee, Denzel Washington, Mahershala Ali… O status quo do cinema americano hoje os aceita como um bem multicultural do país, que produz reverência, aplausos e riqueza… claro. Sem geração de riqueza por alguns, os afro-americanos não iriam muito longe. De um lado luta-se pelo direito de existir como ser social e ao passo das conquistas civis, o talento individual (marginal muitas vezes) foi a ferramenta que travou um possível retrocesso. Uma justificativa pública de que “olha o que fazemos com o que vocês fizeram com a gente”.

Lembrando que o prêmio Nobel de Literatura de 1993 foi para a escritora negra americana Toni Morrison. Que comunidade negra tem uma história de superação coletiva tão forte quanto a americana nos últimos 100 anos?

É demasiada ignorância não aceitar, e respeitar, quando o outro (qualquer outro) é melhor do que você, em qualquer fazer na vida.


Até a semana que vem!

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