No início dos anos 1930, o alemão Hans Bellmer (1902-1975) era um homem socialmente “convencional”: casado com Margarete Schnell desde 1928 e pai de duas meninas, trabalhava como ilustrador publicitário em Berlim. Nessa mesma década, Bellmer entra para hall dos artistas plásticos mais originais e psicológicos do século 20.
Um tipo de artista que desconcerta as certezas, explora tabus e expõe de maneira clara e materializada seus desejos, construindo um corpo de obra coerente, consistente e perturbador. Seja nos desenhos, pinturas, esculturas, fotografias ou instalações, Bellmer é exuberantemente original. Um artista completo (e complexo), apresentando forma e conteúdo (significante/ significado) como poucos de sua geração.
Em 1932 cria o que se tornará a marca de seu trabalho artístico: bonecas em tamanho natural, púberes e hermafroditas. Como uma Mary Shelley às avessas, Bellmer dá vida a seres natimortos, envoltos por uma atmosfera de misoginia, perversão e violência. O fêmeo em seu trabalho é uma construção narcísica obsessiva virulenta (à sua imagem e semelhança?), indicando recalques ainda não conscientes, e com os quais o artista passará seus próximos 40 anos lidando com eles. Seu fetiche é desconstruir de maneira vil o maior ícone das artes de todos os tempos… a mulher.
Com caráter perturbador, suas meninas autômatas explicitam os dois mundos que Bellmer vivia: o social, portanto rígido, e o psicológico, sem rédeas, e no seu caso, despudorado. Seu próprio psiquismo passará a ser seu trabalho a partir desse momento, apresentando de maneira magistral o culto às perversões (que circulam na mente de tantos) sadomasoquistas para com o feminino. Esse gosto pelo que não é assumido publicamente como uma das possibilidades de afeto e prazer, fez com que promovesse sua própria narrativa fantasiosa de vida sexual.
Ao construir adolescentes artificiais (e as fotografando), ele se presenteia com um feminino desejado e nunca conquistado. Uma realidade fabricada para minimizar sua frustração enquanto homem. Ao tocá-las, manipulá-las, fotografá-las, o homem entra no terreno da pedofilia sugerida. A expressão do belo sexual é sentida pelo indecoro aplicado no corpo das bonecas: mutilar a fêmea para assim dominá-la (um colecionador). Há um fluxo dual entre menina/mulher em seu trabalho, que promove uma possível relação inconsciente entre o menino Bellmer e sua mãe. Um Édipo não resolvido? Ele odiava o pai. Todos odeiam?
Todas as bonecas criadas foram fotografadas por ele, tendo, portanto, um total controle dos processos de criação das esculturas (bonecas), fotografias (bonecas possuídas pela subtração destas da realidade) e escritos (artigos conceituais). Ao fotografá-las, dota as natimortas de uma narrativa contextual (lugar, luz, movimento, objetos) que induz o observador questionar se elas (bonecas) possuem anima.
Seria uma alusão ao criador divino, de um homem cria-se uma mulher? Ou uma homenagem a Lewis Carroll e sua relação com a menina Alice Liddel de apenas 10 anos? Teria relação com a sofisticada misoginia do Marquês de Sade?
“Valeu a pena todos os meus esforços obsessivos. Quando, em meio ao cheiro de cola e gesso molhado, a essência de tudo o que é impressionante tomaria forma, e se tornaria um objeto real a ser possuído”, escreveu no seu artigo intitulado “Memórias do tema da boneca”, em 1934.
Temos um artista mergulhado em sua própria sexualidade de caráter feminina pueril. Reprimida a tal ponto que sua feminilidade (não consciente) é um amalgama polifórmico e grotesco.
“Pessoas como eu admitem com relutância, que são aquelas coisas sobre as quais nada sabemos, que se alojam com muita firmeza na memória”, disse Bellmer.
Classificá-lo como surrealista pela história da arte é apenas uma questão de marcador histórico, seu corpo de trabalho (conceito, forma e conteúdo) reverbera até os dias atuais, destoando de muitos artistas da arte moderna (1860-1939) e pós-moderna (1946-1980). Suas bonecas vulgares flertaram Hitler, taxando-o como “artista degenerado”. Não poderia ser diferente, as formas inestéticas e sexuais de Bellmer se opõem aos dogmas do Partido Nazista e seu culto ao ser fisicamente perfeito, que possuem um ideal purificado. Saiu de Berlim e se alojou com a família em Paris, onde foi um ativo colaborador da resistência francesa, utilizando seu talento gráfico na produção de passaportes falsos. É uma história e tanto.
Após a guerra Bellmer não produziu mais bonecas
Os artistas plásticos e fotógrafos surgidos no pós-guerra, especificamente a partir dos anos 1960, absorveram tudo que podiam do Bellmer já consagrado. A criação e disseminação da literatura dos conceitos artísticos ligados às artes da escultura, instalações e fotografia artística, abriram portas para releituras intermináveis com base nos originais artistas dos primeiros anos do século 20. Por isso é importante distinguir original de autêntico em tudo que se vê.
O cinema é a arte que mais utiliza a criação visual e os signos/ fragmentos psicológicos criados pelo artista. O seu subterrâneo psíquico faz a alegria de muitos diretores de arte e roteiristas na indústria americana. Filmes de terror, de crimes (corpos femininos esteticamente dilacerados), necrofilias, serial killers, pornôs, dramas psicológicos com direito a pesadelos… Nem Klimt, Degas, Monet, Manet, Matisse, Picasso, Dalí, Pollock, Rothko e tantos (tantos) outros impregnaram sua influência no inconsciente coletivo quanto Bellmer.
“Se meu trabalho é escandaloso, é porque para mim o mundo é escandaloso.”
Hans Bellmer
Até a semana que vem!
Sobre o/a autor/a
Silvio Eduardo Crisóstomo
Silvio Eduardo Crisóstomo é fotógrafo, artista visual, cineasta, coach para fotografia, arte visual e vídeo e life coach para jovens e adultos. Seus filmes foram exibidos na França, Espanha, Inglaterra, Índia e Brasil. Tem trabalhos fotográficos publicados em livros e revistas na Itália, França, Polônia e Inglaterra. Foi curador no Museu da Fotografia de Curitiba. Trabalhos fotográficos expostos em galerias no Brasil e Alemanha.