O fim da fotografia e ascensão das imagens

O século 21 marca a despedida da fotografia profissional, sem deixar herdeiros ou novas perspectivas

A era da fotografia como instrumento que propicia impacto social findou. Atualmente a sua produção mundial está restrita à mera ilustração de matérias, e raras são as imagens que têm algum peso visual de fato. Digo “peso” no sentindo de choque, importância e ineditismo. Ainda assim, jornais impressos e virtuais continuam utilizando fotografias, pois sem elas os periódicos ficariam visualmente iguais aos do século 19, ou seja, impensável.

Com a chegada do século 21, a fotografia profissional iniciou sua despedida dos flashs, sem deixar herdeiros ou novas perspectivas. Com as mudanças no mundo da comunicação e das profissões, o fotógrafo jornalista não teve direito a um recall. Quem construiu uma carreira em seu tempo… construiu.

Possivelmente a última foto jornalística de impacto mundial foi a do menino refugiado Aylan Kurdi, de 3 anos, encontrado morto em uma praia da Turquia, em 2015. Naquele momento a imagem tocou profundamente o coração de muitos. Ainda sim a brutalidade da situação não deixou legado algum para a resolução da questão dos refugiados por seus países de origem. “A vida é um filme. A morte é uma fotografia”, disse Susan Sontag.

O menino Aylan Kurdi foi encontrado morto afogado em uma praia da Turquia, em 2015.

É um pecado mortal ver um camponês peruano ser retratado da mesma maneira que um na China. A falta de conhecimento estético e formal, bem como o entendimento conceitual aplicado ao assunto, somados à tentativa de superar estéticas autorais do fotojornalismo do século 20, fizeram do profissional desse século um produtor de artificialidades visuais no que antes era a realidade.

O tecnicismo exalta o clichê sem critério e nem conceito diante do real. Talvez tudo já tenha sido fotografado, restando o surrealismo reeditado como um novo padrão de qualidade, com intuito de tirar a fotografia da UTI do tempo.

Com a perda de status da mídia impressa, a fotografia informativa profissional deixa de ser referência do real, e seu poder de comunicação foi rapidamente desintegrado. Em todas as suas áreas de atuação (crônica de cidades, cobertura política, guerras, foto documental, esportes etc) seu valor de mercado diminuiu substancialmente. A televisão sorriu ao ver o seu principal competidor ficando para trás.

Não precisamos mais de fotografias profissionais para ver e entender o mundo. O que foi feito de bom está na história do nosso tempo.

Vale lembrar que foi com uma publicação em rede social (com sua selfie) do jovem médico chinês Li Wenliang, em seu leito hospitalar, que confirmou a existência e o perigo da Covid-19 para o mundo.

A selfie do médico chinês Li Wenliang, que confirmou a existência e o perigo da Covid-19.

O fotojornalismo mudou de mãos. Sem critério formal algum, qualquer pessoa é um “jornalista cidadão”, tendo como objetivo (consciente ou não) o registro em vídeo da vida mundana em tempo real. Transformaram-se em produtores independentes de conteúdo para grandes veículos de comunicação (e seus filhotes independentes). Do povo, pelo povo e para o povo, como diria Lincoln.

Lembrando que a etimologia da palavra “jornalismo” vem do latim “diurnalis”, que significa “relativo ao dia”, “diário”. Portanto é legítimo que o cidadão seja um fotojornalista amador. A liberdade da comunicação para todos se completa finalmente: escrita, oral e visual.

Para não morrer, a fotografia profissional comercial (incluindo a de moda e publicitária) migrou com força para o que antes era a segunda divisão do mercado fotográfico: eventos familiares e ensaios particulares de adultos e crianças. Áreas que, com a ajuda dos grandes fabricantes de equipamentos, cresceram vertiginosamente.

Todas as técnicas e equipamentos possíveis são utilizadas para manter um mercado que tenta fabricar, o que antes era restrito às revistas de moda e celebridades, o glamour para o cidadão comum.

A técnica como valor supremo é a herança do homem moderno, pós-industrial. Com a visão mercadológica dos livros de fotografia, somadas ao marketing da indústria das câmeras, a técnica se sobrepôs ao valor da mensagem estética e textual. O mercado nos “educou” a não estudar o saber que esse fazer criou, como um ato de desenvolvimento intelectual, e sim consumir equipamentos e a produzir ingenuidades visuais. A supervalorização do registro da memória afetiva foi a grande sacada para isso perdurar.

A fotografia no século passado marcou pela extraordinária capacidade de registrar a espontaneidade da vida em todo o seu esplendor. Já a produção fotográfica atual higieniza as situações sociais com padronizações estéticas. Uma boa foto é diferente de uma grande imagem.

Nesse contexto, o fotógrafo volta-se completamente à sua origem, o século 19, com suas lojinhas, que recebiam as famílias a procura de serem registradas com a máxima maestria, ou a pedido das famílias mais abonadas, os registros eram feitos em suas residências.

As contínuas mudanças pós-revolução industriais continuam até os dias atuais. Como toda revolução, o status quo vigente cai enquanto outro emerge. Somos inquietos. Será assim sempre. 

Quando Barack Obama tirou uma selfie junto de David Cameron (então primeiro-ministro da Inglaterra) e a ex-primeira-ministra da Dinamarca Helle Thorning-Schmidt, em 2013, o jornalismo fotográfico viu na prática o fim de um tempo e o início de outro. O fotojornalista que capturou a cena poderia ser facilmente chamado de paparazzi.

Diante deste texto é bom afirmar que o ato de fotografar não desaparecerá nesse século. Nós temos um forte desejo de capturar e posse. A  democratização da prática fotográfica (essa palavra já indica que havia uma elite detentora do valor dessa mesma prática) é bem-vinda e movimenta um mercado em franco crescimento e aparentemente imune às crises. Banalizar o valor da máquina, ser o “porta voz da realidade” e ainda editá-la. Um ganho real no entendimento de quem somos, o que fazemos e o que somos capazes de fazer vivendo em sociedade. Unimos mais uma vez a comunicação oral, escrita e visual num só tempo e registro.

O que se inseriu na categoria do banal (e isso é definidor para o valor da fotografia) foi a não diferenciação entre o entendimento tecnológico e o saber da expressão humana, que se estabelece desde os tempos de Lascaux.

Sendo um hábito massivo e tão banal quanto lavar as mãos, sugere uma pergunta: para que estudar fotografia? Não há sentido prático algum realmente. Ao mesmo tempo os celulares se sofisticam, e as plataformas de exposição de imagens se aperfeiçoam, numa agressiva exposição do mundo, espaço esse onde uma nova revolução na comunicação de massa fincou sua bandeira.

Entretanto é igualmente o século da “imagem total”: emojis, smiles, emoticons, gifs, memes, fotos, reproduções de pinturas e vídeos. Todos possuem o mesmo valor  homogêneo na comunicação nos tempos atuais.

Nada de reclamações saudosistas. A imagem digital é uma evolução lógica no processo histórico do registro de imagens por meio de máquinas. Chegaríamos nisso mais cedo ou mais tarde.

Ninguém imaginaria tempos atrás que “tirar” uma foto, esvaziaria seus significados na nossa história.

Até a semana que vem!

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