A cor sem caráter

Nada é decisivo no cinza, tudo nele é vago; contraditoriamente é cor das cinzas, do fim

Falar sobre cor é amplo, abstrato (luz, espectros, tons, ondas) e concreto (superfícies, produtos, matéria, objetos) ao mesmo tempo.  Ela é um marcador dos períodos do dia com variações de cor por vezes extremas. Portanto, a cor é um dos componentes de organização do sistema biológico e psíquico da nossa espécie.

No cotidiano mundano, não confie na aparência superficial das cores. Elas são “dependentes afetivamente” da apreciação de nossos olhos. Tentam de todas as maneiras atrair a atenção; convencer de algo, nos iludir e encantar. São capazes de autoagressão, ao unirem-se às formas medíocres, grosseiras, ordinárias; tamanha a necessidade de despertar interesse. Consciente ou não, toda cor seduz, seja por sua beleza ou feiura.

Existe uma cor, que não se interessa pela exposição preferindo a discrição; se apoiando em tons mais solares ou gélidos. Uma cor tímida sem dúvida, mas nem por isso inofensiva, tendo a sua força na capacidade de corromper os extremos das cores: o branco e o preto. A cinza macula o branco luminoso; alvo, cândido, casto, criando a sensação de descaso, confuso e impuro. O preto perde sua potência quando se relaciona com o cinza, ficando turvo, frio, sombrio e pesado. A dizer que existem 65 tons dessa cor.

Nada é decisivo no cinza, tudo nele é vago; contraditoriamente é cor das cinzas, do fim. Uma cor conformista, que vai com tudo; não é quente nem frio, feminino ou masculino; não é mental nem material, possuindo uma flácida personalidade.  

Eva Heller em seu livro “A Psicologia das Cores – Como as cores afetam a emoção e a razão”, diz que “o cinza é o velho, sem nenhum embelezamento, medíocre; é a cor de todas as adversidades que destroem a alegria de viver. O cinza é insensível, pois não é branco ou preto, nem sim nem não. Os sentimentos, assim como as cores são destruídos pelo cinza.  É a cor das nuvens (sim – nuvens não são brancas) e do mau tempo.

Na língua alemã o aspecto negativo, por vezes maléfico, da cor cinza é bem acentuado como descreve Eva Heller, “o cinza (grau) gera grauen (o terror, o horror) e grausen (cruel). A expressão “à noite todos os gatos são pardos” em alemão se diz grau, cinzento”.  O sentido do ditado é desde que ninguém saiba de algo, ninguém é castigado.

Aqui no Brasil, o “cinza alemão (grau) ” de várias expressões populares foi substituído pela palavra “pardo”, retirando a interpretação e o simbolismo da cor que fazia sentido na Alemanha, por uma nomenclatura com uma intenção originária dúbia, sem caráter. A desfaçatez brasileira do racismo silencioso e velado na boca do povo. A palavra “pardo” no Brasil significa “mestiço, mulato”.

No livro O Racismo e o Negro no Brasil: Questões para a Psicánalise (2017), as autoras e psicanalista Maria Lúcia, Noemi Moritz Kon e Cristiane Curi Abud, escrevem que “ (…) como pardo é sempre definição externa, o nome funciona como um tipo de: “nenhuma das anteriores”. Ora, é importante questionar um sistema classificatório que, na impossibilidade de definir, cria um novo termo para dar conta do que se escapa da seleção. Mais ainda, se tecnicamente o termo se comporta como quinto elemento – dentre as categorias oficiais: branco, negro, amarelo, vermelho e pardo -, na intimidade ou no poderoso discurso do senso comum, pardo é moreno: essa cor que tem se destacado nos últimos censos. Pardo é, pois, um termo paradoxal e de difícil tradução. Na linguagem oficial, representa uma incógnita; já na popular, tem cor definida e é silencioso, à semelhança do racismo vigente em nosso país”.

Lembrando que cinza é a cor do mofo, da decomposição, do intragável.

Aquilo que é secreto alude ao mal. Os sentimentos mantidos em segredo se tornam cinzentos – o cinza da avareza, da inveja, da fumaça do conclave, do nazismo.  

O ex-secretário especial da cultura Roberto Alvim, estava de cinza no seu infeliz e “histórico” pronunciamento. O cinza é sem caráter e possui abundante memória.

Mas, não é por “esse detalhe” que a cor não seja utilizada na política: se roupas e campanhas usassem o cinza, transmitiriam apatia, tédio e insegurança (e todos os adjetivos já citados). Se bem que aqui no Brasil essas percepções já acontecem com todas as gamas de cores.

Em 2017, o então prefeito João Dória, cobriu todos os grafites e pichações localizados uma das vias mais importantes de São Paulo, pintando-os de cinza. O cinza é a cor da serena falta de criatividade e da “urbanogenia”.

Sua austeridade representa a classe operária, com seus aventais e macacões, na fila para bater o ponto numa máquina cinza.  É a cor da indústria e das cidades: concreto, cimento, bloco, zinco, aço, grosseiro e opressivo. Como o cinza por muitos anos foi considerado “uma cor operária”, acaba por homogeneizar-se   a identidade visual dos empregados. O cinza esfria todas as vontades individuais. É a cor da penitência.

Fraquezas e crueldades geralmente são cinzas. Em 1310, Giotto esculpiu em pedra de cor cinza, uma grande obra chamada “ Os Sete Vícios: Desespero, Inveja, Incredulidade, Injustiça, Ira, Inconstância, Insensatez. Temos também Picasso com “Guernica” de 1937, uma pintura feita com cinza sobre cinza.

O cinza das vítimas das bombas terroristas, dos vulcões em erupção, do olhar de Medusa, das teias de aranha.

“Há uma cor que não vem nos dicionários. É essa indefinível cor que tem todos os retratos, os figurinos da última estação… a cor do tempo”, disse certa vez Mario Quintana.   

A cor do tempo é o cinza dos cabelos grisalhos, da massa cerebral cinzenta, da pele sem tônus, do encardido. Os gurus e adeptos à autoajuda detestam a cor cinza, basta pesquisar suas frases na web.

Mesmo com tantos adjetivos depreciativos, o cinza resiste bravamente, sendo alçado à categoria de “tendência do ano” regularmente.

Vale lembrar que o carnaval termina com a quarta-feira de cinzas.

Até a semana que vem!

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