Bob Dylan A.C

Netflix estreia documentário de Scorsese sobre turnê antológica de Bob Dylan
Cartaz de lançamento

Estreia nessa quarta-feira (12), no Netflix, Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese. É uma das turnês mais famosas de Dylan pensada, primeiramente, para promover os álbuns Blood on the tracks, de 75, e Desire, do ano seguinte, dois de seus discos mais aclamados. Mas a turnê se tornou bem maior do que isso. Dylan não queria só excursionar com uma banda. Ele havia voltado a frequentar o Village, em Nova Iorque, onde começou, e a rever velhos amigos daquele período (início dos anos 60). Além disso, palavras dele, tinha uma “dívida e um carma para queimar“, já que havia se tornado muito maior do que seus colegas de geração e, de certa maneira, ofuscado e monopolizado a cena folk em detrimento de outros artistas talentosos que partilhavam das mesmas crenças e ideias. Dylan estava rico e os outros não. A Rolling Thunder Revue começou no final de 1975 e foi até o início de 76, percorrendo Estados Unidos e Canadá.

A ideia de Dylan era reviver a ideia de comunidades artísticas dos 60. Reunir cantores, músicos, atores, escritores, encenadores, artistas em geral, em uma caravana itinerante à maneira dos medicine shows do século 19 e dos espetáculos de vaudeville do início do século passado, que estão na origem da indústria do entretenimento nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, Dylan tinha em mente a realização de um filme, Renaldo and Clara, que contaria uma história (a sua história de amor), teria cenas de shows e dos bastidores da turnê.

Dylan em Plymouth, Massachusetts, onde começou a turnê*

A certa altura, A Rolling Thunder Revue chegou a reunir 90 pessoas na estrada e nos ônibus da turnê, 60 no mínimo, entre artistas, amigos, técnicos e convidados. Tudo bancado por Dylan. Entre os destaques da turnê estavam Joan Baez; Roger McGuinn (ex-Byrds); Ramblin’ Jack Elliott; Kinky Friedman; Bob Neuwirth; T-Bone Burnett; Mick Ronson (ex-Bowie e Spiders From Mars); David Mansfield; Steven Soles; Scarlet Rivera (a violinista de Desire); Rob Stoner e o baterista Howie Wyeth; além do ator e dramaturgo Sam Shepard, do poeta Allen Ginsberg, da atriz Ronee Blakley e do psicólogo e diretor teatral Jack Levy (Oh! Calcutá!), diretor da excursão. Em alguns shows, juntaram-se à trupe Joni Mitchell, Richie Havens, Patti Smith, Ringo Starr, Arlo Guthrie e Dennis Hopper, entre outros, como no encerramento da primeira fase da turnê, no Madison Square Garden, em concerto beneficente para o boxeador Rubin “Hurricane” Carter, em 8 de dezembro de 1975. Hurricane é a faixa de abertura de Desire, um manifesto de Dylan pela libertação de Carter, segundo ele acusado de um crime que não cometeu.

Dylan e Joan Baez ensaiando durante a turnê*

Alguns shows da turnê chegavam a durar quatro, seis horas, com os artistas se revezando no palco para fazer o que quisessem. Dylan aparecia com maquiagem e figurino especiais, whiteface (rosto inteiramente pintado de branco), e máscaras. Tudo por conta de Renaldo, seu personagem no filme que estava “escrevendo” com Sam Shepard, produzindo e gravando durante a Rolling Thunder Revue. Shepard leva o crédito como co-roteirista, embora ele mesmo tivesse afirmado na época que Renaldo e Clara não tinha roteiro algum, tanto que abandonou o projeto. Clara, naturalmente, era Sara, que acompanhava o marido na turnê ao lado dos quatro filhos e da mãe de Dylan. Mas o casamento estava em crise. Blood on the tracks é o retrato doído da separação depois de 12 anos e um dos melhores discos de Dylan.

Dylan no backstage da turnê*

Renaldo and Clara foi lançado em 1978 com quatro horas de duração. O próprio Dylan o reeditaria mais tarde em uma versão de duas horas, atendo-se mais aos números musicais da turnê. Mas não foi a única e nem a última experiência de Dylan no cinema. Don’t Look Back, dirigido por D.A. Pennebaker, acompanha a tumultuada excursão à Inglaterra em 65, na transição do folk acústico de Dylan para a guitarra elétrica. Lançado em 67, é considerado um dos melhores documentários de rock já feitos. Pat Garret and Billy The Kid é de 73, direção de Sam Peckinpah. Dylan faz uma ponta no filme e a trilha sonora (premiada), que tem a canção Knockin’ on Heaven’s Door. Em 2003, novamente volta a atuar e a compor a trilha de Masked and Anonymous, direção de Larry Charles. O próprio Scorsese já tinha trabalhado com Dylan no documentário No Direction Home em 2005. Vale também o registro do ótimo I’m Not There, dirigido por Todd Haynes, lançado por aqui em 2008, fantasia delirante sobre Dylan, interpretado em diferentes fases por Christian Bale, Cate Blanchett, Heath Ledger, pelo garoto Marcus Carl Franklin, Richard Gere e Ben Whishaw.

Por sua vez, Martin Scorsese tem vasta experiência no documentário de rock. São dele: The Last Waltz (O último concerto de rock), despedida dos palcos da The Band, de 78, banda que acompanhou Dylan em vários álbuns (Dylan participa do concerto); Shine a light, com os Rolling Stones (2008); e George Harrison: Living in the Material World, de 2011.

Além do documentário, a caixa Rolling Thunder Revue: The 1975 Live Recordings, em gravação profissional com 14 CDs e 148 faixas, deve chegar às lojas como parte  do lançamento.

Mais de 100 músicas nunca foram lançadas anteriormente. O box set traz ainda um livreto de 52 páginas com fotos raras e inéditas da Rolling Thunder Revue e um ensaio do romancista e músico Wesley Stace. Simultaneamente, o Volume 5 da famosa Bootleg Series, sobre a turnê, será lançado em um conjunto com três LPs (vinil) e livreto com 64 páginas. Com toda certeza, um dos acontecimentos mais relevantes da indústria da música neste ano.

O que dá para esperar do filme

– Dois dos maiores criadores do século XX: Bob Dylan e Martin Scorsese.     

– Imagens nunca vistas da turnê.

– Depoimentos de personagens da época e, provavelmente, mais depoimentos de quem viu ou acompanhou a turnê.

– A primeira entrevista de Dylan na frente de uma câmera em mais de 10 anos: “Não foi um sucesso. Não se você mensurar o lucro… A vida não é sobre se achar ou achar qualquer coisa. A vida é sobre criar.” Há muito (ou desde sempre) Dylan nunca foi dado a entrevistas.

– Muitos nomes conhecidos que participaram e atuaram na turnê.

– Canções. Ótimas canções.

O filme também é a última oportunidade de ver Dylan em uma de suas personas mais interessantes, a do bardo cigano, teatral, performático, mambembe, divertido e generoso com seus amigos e amigas. No final da Rolling Thunder Revue, Dylan estava esgotado, debilitado, raivoso, isolado, por conta do ritmo de trabalho intenso, consumo exagerado de drogas e, principalmente, da separação e do divórcio de Sara.

Ensaio para os shows da turnê

Renaldo and Clara foi um fracasso de crítica e público e reduziu consideravelmente sua fortuna com a turnê e as diárias de gravação para o filme, tudo bancado por Dylan. Em 1978, Dylan lançaria Street Legal, um bom disco, mesmo ano em que, surpreendentemente, “recebeu o Senhor” e converteu-se ao cristianismo fundamentalista. Dylan era/é judeu. Durou quase três anos e uma trilogia de três discos de pregações, juízos morais (inclusive em shows de novas turnês, o que desagradou parte de seus fãs), e música gospel: Slow Train Coming (79), Saved (80) e Shot of Love (81). São discos ruins? De forma alguma. Outro dos itens das Bootleg Series, Bob Dylan Trouble No More 1979-1981, Volume 13, lançado em 2017, prova o contrário, com ótimas canções, shows e o gênio que há em Dylan, Prêmio Nobel de Literatura em 2016, mas não por isso. Dylan sempre foi maior do que tudo que disseram sobre ele.   

Veja aqui o trailer de Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese                    

*Todas as fotos são do fotógrafo Ken Regan, que estava a bordo da turnê Rolling Thunder Revue e fez cerca de 14 mil fotos dos concertos. As fotos foram reunidas no livro “Rolling Thunder: Photographs By Ken Regan”, lançado em 2016.  

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