Na luta pela adaptação e mitigação da crise climática, reivindicamos a todo o tempo as conclusões científicas, “a ciência”. Nessa disputa que também é discursiva, deslocamos o problema da esfera política para a academia, do sentimento para a lógica, na tentativa de converter pessoas a agir por um planeta mais sustentável, com o perdão do trocadilho.
Esse movimento não é aleatório. A ruptura da modernidade entre humanidade e natureza relegou o sentir a uma categoria inferior ao pensar, de forma que o paradigma corrente dá ao sentir uma conotação negativa, traduz como sinal de irracionalidade e fraqueza. Assim, a fratura socioambiental potencializa a fratura colonial, um movimento a que Malcolm Ferdinand (2022) se refere como “a dupla fratura da modernidade”.
Portanto, ao racionalizar a questão ambiental, assim como o direito ao aborto, fundamentando o discurso na ciência, revestimos o debate com seriedade. Em contrapartida, com um Congresso Nacional com entonação conservadora, o Estado laico cai por terra e mulheres e meninas e a natureza viram alvo.
No ano em que o golpe de 1964 completa 60 anos, ele segue como um fantasma a assombrar o presente. Na lição precisa da professora de ciência política – Dra. Heloisa Fernandes Câmara, “rememorar um fenômeno é também recriá-lo: elaboram-se interpretações que aliam o passado ao presente e, com isso, esboçam possibilidades de futuro”.
Assim se conectam as propostas legislativas difundidas como “PEC das Praias” e “PEC do Estupro”. Em ambos os casos falamos do direito à vida das mulheres, dos humanos e não humanos, à liberdade e à igualdade contidos no art. 5o da Constituição Federal Brasileira, e não é forçoso concluir que ainda há uma necropolítica em curso no país, fruto de um colonialismo que persiste desde Abya Yala; localmente, desde 1.500.
À luz da emergência climática, os dados científicos existentes evidenciam parâmetros de exclusão que tornam as mulheres mais vulneráveis.
Dentre as particularidades que atingem as deslocadas ambientais, por exemplo, nota-se logo de início um menor acesso a recursos como a terra que as torna mais suscetíveis às migrações ambientais. Durante os deslocamentos como o que ocorreu no Rio Grande do Sul neste ano, as mulheres sofrem mais violência e evidenciam menor capacidade para reivindicar direitos, entre outras especificidades inerentes ao território-corpo.
Em nome do capital, o colonialismo dessensibiliza, destrói os laços humanos dos grupos, e para destruir o grupo mais forte de todos – a família, as mulheres são atacadas. Assim, o processo colonial afasta os coletivos, sacrifica as mulheres e a natureza.
Como bem ressaltou a professora de direito socioambiental da UFPR – Dra. Katya Isaguirre, “para além de discutir a imposição dos papéis sociais pelo patriarcado, precisamos recordar a vulnerabilidade das mulheres diante da crise ecológica/climática”.
Em artigo publicado no Plural, ela destaca que as mulheres são afetadas de forma desproporcional pela crise ecológica e correlaciona as violência sofridas – psicológica, moral, física, sexual, deslocamento compulsório e desterritorialização – com o desmatamento, os impactos dos projetos de infraestrutura, a mineração ilegal, o narcotráfico, a agropecuária intensiva e a extração ilegal de madeira.
Enquanto as mulheres latinoamericanas sangram para defender o direito mínimo ao corpo e à vida, ganha corpo no Direito socioambiental internacional a possibilidade de que a natureza, ela própria, seja um sujeito de direitos.
A ideia de direito ao meio ambiente seguro e saudável começou a ter tração dentro das discussões de direitos humanos durante o século XX. Em 1972, no âmbito da primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (também conhecida como “Cúpula da Terra” ou ECO-92), passou pela concepção de desenvolvimento sustentável – uma tentativa de conciliar a conservação do meio ambiente com as atividades econômicas e industriais humanas.
A sustentabilidade preza pela preservação dos recursos naturais no presente para manter a possibilidade de vida das gerações humanas e não humanas futuras, e foi incorporada no Brasil, pela Constituição Federal de 1988 como um princípio (art. 225): “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
O princípio da sustentabilidade também baseou os 16 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, e norteia as práticas ESG, cada vez mais presentes no mercado.
Esse histórico enfatiza o direito dos humanos a um ambiente saudável, dentro de uma concepção antropocêntrica colonial que ainda prevalece; porém, contemporaneamente tem-se discutido outras possibilidades como os direitos da natureza, que se pautam na própria natureza como sujeito de direitos, partindo, portanto, de uma visão ecocêntrica plural que refuga o utilitarismo para dotar plantas, animais e rios, p. ex., de valores próprios e em si mesmos, e não como mero objetos da exploração humana.
A foto que ilustra este texto, reflete as pernas desta (pseudo) fotógrafa que assina o texto abaixo do rosto de Frida Kahlo, consistente em um autorretrato estampado no centro do vibrante tecido que ornamenta a vitrine de uma loja de aviamentos em Roma, na Itália, dando a impressão que formam um só corpo.
Nascida Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, em Coyacán, no México (1907 – 1954), Frida Kahlo foi uma pintora mundialmente conhecida pelos seus muitos retratos, autorretratos, obras inspiradas na natureza e na cultura popular mexicana, que exploram questões de identidade, pós-colonialismo, gênero, classe e raça, com fortes elementos autobiográficos como suas dores crônicas e os abortos que sofreu.
Através da arte, Frida sublimou sua dura trajetória de vida, marcada por seqüelas de poliomielite e um grave acidente, impulsionada a produzir uma vasta e belíssima obra, na qual dor e cores são constantes. A arte tem esse lugar da sensibilização, uma estética que se torna decolonial quando posta para que o espectador sentipense, conforme sua própria ontologia, e torna-se artivismo quando posta em espaço público de apresentação e discussão, voltado à transformação social.
Ironicamente, embora paridos sanguinolentamente, os autorretratos de Frida tornaram-se tão populares no Brasil, que hoje estampam de roupas de pet a mochilas e almofadas, sendo largamente utilizados como fantasia, sem que provoquem, na maioria das vezes, a reflexão que faço aqui.
Ora, mas que tem a ver o reflexo das pernas de uma brasileira, na vitrine de uma loja de tecidos italiana, sobpostos ao rosto da artista mexicana Frida Kahlo com os ataques da extrema direita às mulheres, meninas e à natureza?
Para além da latinidade que permeia a imagem e suleia o texto, esse é um chamado de sensibilização à dor do outro, algo preconizado na bíblia cristã como “amor ao próximo”, como possibilidade de realização do Direito e aproximação à justiça socioambiental.
Sobre o/a autor/a
Luciana Ricci Salomoni
Advogada e pesquisadora. Sócia-fundadora da Ricci Salomoni Sociedade de Advogados @rslaw_. Mestranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFPR). Especialista em Direito Ambiental (UFPR), Direito Empresarial (IBMEC) e Direito Processual Civil (Instituto Bacellar), com estudos em Feminismos, Direito da Arte e Patrimônio Cultural pela Academia de Direito Internacional de Haia e certificação ESG pela Universidade de Cambridge. Integrante das Comissões de Direito Ambiental e de Assuntos Culturais (OAB/PR). Mãe.