Dia 72 – Parêntese

No último texto escrevi que chegávamos aos 20 mil mortos. Agora, chegando aos 30 mil, a curva só não é uma reta para cima porque é impossível parar o tempo

Preciso pegar algumas coisas particulares que ficaram no meu local de trabalho e preparo a operação de guerra. Um borrifador com álcool líquido, mais um tubinho de gel no carro, máscara, luva. Só não tenho o escafandro, ainda estou com dificuldades para convencer minha mulher de que é um item de primeira necessidade.

No escritório, o clima de pós-apocalipse não é diminuído pelo bip-bip dos computadores ligados, fornecendo acesso remoto aos funcionários. Em minha mesa, o calendário está aberto no dia em que deixamos o ambiente, somando 72 dias desde o anúncio do fim daquele mundo.

Ao chegar em casa, a operação de limpeza segue os mais rígidos padrões internacionais de higiene para eliminar todos os vírus que certamente estão colados na minha roupa, rindo em grupo, aguardando uma respirada mais forte para invadir meu organismo e minar todos os meus sistemas de defesa. Junto minhas forças para evitar exercer demais minha hipocondria.

Mesmo após o banho permanece a sensação de que faltou lavar algum lugar ou que foi tarde demais e a respirada mortal já foi dada. Aproveito para lavar a louça e as mãos e os braços mais uma vez. Minha mulher briga comigo ao me flagrar usando o lado verde da esponja em um teflon frágil.

Na TV, a cena de um policial americano sufocando um homem negro até a morte está sendo reprisada. É mais um aspecto em que os dois países se parecem muito: toda bala perdida se encontra no corpo de um negro pobre. Ninguém morre de bala perdida no Batel.

O outro aspecto famoso, agora, é a inegável liderança do vírus nos dois países – falta só um pouco para que o slogan federal faça sentido.

O vídeo da reunião ministerial me faz lembrar minha adolescência, quando me reunia com meus amigos para beber e falar o maior número de asneiras e palavrões possíveis. Sim, éramos um bando de idiotas. Tínhamos potencial ministerial e não sabíamos.

Um general decrépito e aparentemente muito saudoso da ditadura faz ameaças ao STF, provando que até o vírus faria um governo melhor. Como sou um otimista por natureza, fico feliz por estar aprendendo muito sobre culinária ultimamente. Em breve pode ser que os únicos textos aprovados para publicar aqui sejam do tipo “Bolo Gostoso para o Café da Tarde”.

Uma pessoa conhecida posta uma mentira no Facebook. Desconfiado, pesquiso a informação, encontro um site que mostra dados apurados e desmente a farsa, volto ao perfil e aviso: ei, isso é uma mentira, olha aqui a informação verdadeira. Depois de um tempo vejo que sua única reação foi apagar meu comentário. A verdade não importa se não for favorável a adivinha quem.

No último texto escrevi que chegávamos aos 20 mil mortos. Agora, chegando aos 30 mil, a curva só não é uma reta para cima porque é impossível parar o tempo. As previsões apontam 130 mil mortos em agosto. A doença ainda não atacou ninguém próximo? Pois vai. É muito, muito difícil conversar com quem está disposto, para favorecer o governo, a pegar uma doença e se tratar com um remédio comprovadamente ineficaz para ela.

Não faço ideia de como será o mundo depois de tudo – hoje tudo é só uma penumbra, um intervalo, um parêntese no tempo. Mas será ótimo saber quem são aqueles que nunca entrariam no cercadinho de fãs do Bolsonaro – e aqueles que nunca sairão dele.

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