Juntos e Shallow “Não”

A linguagem de uma canção popular é fruto da soma entre a linguagem poética com a linguagem musical

Virou assunto na internet a gravação de uma versão brasileira de “Shallow”, feita por Paula Fernandes e Luan Santana. O foco dessa coluna que escrevo no Plural é a música do cinema e, como se trata de uma canção oriunda de um filme, vou dedicar algumas linhas para comentar esse episódio, pitoresco, da nossa indústria cultural nacional.

Não tem nada de anormal no fato de uma cantora como Paula Fernandes ter tentado surfar na onda de um sucesso “gringo”. Isso é antigo, Leandro e Leonardo gravavam músicas americanas em quase todos os seus discos. “Eu Juro”, por exemplo, é uma delas. Trata-se de uma versão da canção “I Swaer”, do cantor country americano John Michael Montgomery, que entrou na lista das 100 melhores da Billboard em 1994. A canção teve também uma versão R&B com a banda californiana All-4-One. Essa última fez parte da trilha do filme Apenas Amigos (2005), estrelado por Ryan Reynolds.

Sobre a Shallow Tupiniquim, o que ficou estranho mesmo foram as explicações da Paula Fernandes. Aquela conversa de fazer uma homenagem à canção original não colou. Claro que ela não falaria algo do tipo: “quis aproveitar o ensejo”. Nem precisava, ficou mais do que claro que o lance todo foi comercial. O mesmo vale para o Luan Santana, que entrou no pacote. Aliás, não fosse por essa “obra” sequer estaríamos falando dos dois.

Vamos a alguns questionamentos:

  • Precisa mesmo fazer uma homenagem à canção da Lady Gaga?
  • Qual a relevância disso para a música nacional?
  • Qual a contribuição dada por Paula Fernandes e Luan Santana à música popular brasileira desde que surgiram no cenário musical?

As respostas podem variar pouco entre “não” e “nenhuma”. Os dois artistas são produtos da mídia, da publicidade e da indústria.

Mas por que a canção “Juntos” e sua frase bisonha com o “Shallow Now” é tão ruim?

Por uma razão muito simples: linguagem. E não falo apenas sobre o uso confuso do idioma, mas sim sobre a “Linguagem da Canção”. Explico:

A linguagem de uma canção popular é fruto da soma entre a linguagem poética, que carrega os elementos textuais, com a linguagem musical (melodia, harmonia, ritmo, forma, etc). Esse tipo de análise interna da canção vem de estudos acadêmicos sérios, como o de José Geraldo Vinci de Moraes, publicado em 2000 pela Revista Brasileira de História, da Universidade Estadual Paulista. Logo, a letra de uma canção não é feita para ser lida como poesia, mas para ser cantada como música.

Quando se faz uma versão de uma música de outro idioma é preciso atentar para alguns cuidados específicos, que são:

  1. Não corromper a ideia original do compositor;
  2. Cuidar para que a adaptação ao novo idioma não estrague a musicalidade da canção.

Fazendo o contrário disso, a versão poderá causar “aversão” aos ouvintes mais atentos.

Isso tudo que estou falando não é algo novo. Em 1965, Vinicius de Moraes já debatia o assunto. Numa entrevista publicada em 28 de abril daquele ano, pelo Jornal do Brasil, ele falou sobre as versões da Bossa Nova que estavam sendo escritas em inglês, para serem gravadas por cantores como Ella Fitzgerald e Frank Sinatra. Note os dois nomes que estavam interessados em gravar a Nossa Música Popular. Percebe a diferença?

A versão de “Garota de Ipanema” que Frank Sinatra gravou, fazendo um dueto com o próprio Tom Jobim, é simplesmente impecável. O cuidado do letrista com a musicalidade foi tão grande que o trecho no qual a letra em português diz “é a coisa mais linda que já vi passar”, foi traduzido com um suspirante “A-a-ah” no final da frase. Faz sentido e é musical.

Na ausência de um vocábulo que tornasse “shallow” um pouco mais musical, Paula Fernandes arriscou deixar a palavra em inglês mesmo. Deu ruim.

Resumindo, para fazer uma versão adequada era preciso entender de Inglês, Português e Música. Se não sabe brincar, é melhor não descer para o play.

Para ir além

“I Swaer”, na performance de Ryan Reynolds

https://www.youtube.com/watch?v=CkSpkpPs5RI

“The Girl From Ipanema” (o trecho do “A-a-ah” começa aos 25 segundos)

https://www.youtube.com/watch?v=NldPFVKYmiw&list=RDNldPFVKYmiw&start_radio=1

Leia mais artigos de Daniel Derevecki

https://www.plural.jor.br/o-leitmotiv-na-saga-dos-vingadores/

https://www.plural.jor.br/os-vingadores-e-game-of-thrones-duas-sagas-musicais/

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