A história do Brasil é a história dos déspotas. Escrita pelos tiranos e narrada pelos supremacistas, somos levados a acreditar na imagem de um país de concordância e harmonia entre raças e classes — a dita (falsa) democracia racial. E nesta eterna caverna de Platão, o Brasil esconde os seus ossos no armário, enterra seus mortos na vala comum e queima os registros de toda e qualquer narrativa que ouse se levantar contra a hegemonia dos que estão no topo.
Nossa luta por um Brasil que não está no retrato se transcreve para Curitiba, que desde sempre tenta apagar e excluir a história dos que estão à margem, mas que construíram cada prédio e asfaltaram toda rua da “Europa sulista”. Nossas marcas efervescem a cidade e preenchem todos os espaços, mas ainda são constantes as tentativas de invisibilizar a nossa presença, tornando-a apenas histórias na memória dos que resistem. Hoje, trazemos à memória a Sociedade Protetora dos Operários de Curitiba, antigamente localizada na “subida do morro” do Largo da Ordem, em frente a atual Mesquita Árabe e ao lado da Praça João Cândido, no Alto do São Francisco.
A Sociedade Protetora dos Operários foi fundada em 28 de janeiro de 1883, por Benedito Marques dos Santos, um trabalhador negro que exercicia a função de pedreiro. Há indícios de que este era um homem ex-escravizado e que pertencia ao Dr. Generoso Marques dos Santos; esta sociedade foi pioneira na cidade de Curitiba, surgindo anos depois diversas outras que podem ser consideradas os primórdios do sindicalismo curitibano nos salões do operariado negro. Este espaço era o local de encontro e de apoio mútuo entre trabalhadores e trabalhadoras, em sua maioria negros e negras, com o objetivo de assegurar o amparo financeiro aos agremiados e familiares.
O historiador Gustavo Pitz relata que era esta entidade que organizava as comemorações do dia Primeiro de Maio, dia do trabalhador e da trabalhadora, em que debatia-se a adesão às greves, as condições de trabalho, as questões relacionadas ao sistema econômico vigente e diversas outras pautas de interesse da classe operária. Foi em frente à sede da Sociedade Protetora dos Operários que se concentrou o movimento de protesto da maior greve da história de Curitiba. Durante a sua trajetória, a sociedade ainda pautou as questões da educação, em que na década de 30, fundaram uma biblioteca e escola noturna para ensino dos sócios. A escola levava o nome do fundador da sociedade e o professor era Adolpho Britto, também homem negro descendente de escravizados.
Há dois meses, a Sociedade foi demolida para dar espaço à construção de um estacionamento para que a população pudesse estacionar seus carros e passear pela região para aproveitar a cultura do centro histórico, como se a história da organização dos trabalhadores e trabalhadoras da cidade não tivesse a mínima importância. No estacionamento se vê a marca desta gestão: muito asfalto e descaso social. Na lateral virada para a Praça João Cândido está o que sobrou da sede da sociedade, que ao invés de no mínimo ser restaurada, foi pintada sendo inserida a percepção geral do muro e fechadas as janelas que eram uma grande marca da edificação.
Viver sem conhecer o passado é andar no escuro. E enquanto a hegemonia dos déspotas prevalecer, continuaremos fazendo ouvir o grito dos que construíram cada canto desta cidade e a pintaram de povo. Viva a memória Sociedade Protetora dos Operários!
Para ir além
PITZ, Gustavo. Que Fim Levou a Sociedade Protetora dos Operários?. Tutistória. Disponível em: https://turistoria.com.br/que-fim-levou-a-sociedade-protetora-dos-operarios
Sobre o/a autor/a
Carol Dartora
Feminista negra, historiadora, especializada em Ensino de Filosofia e mestra em Educação pela UFPR. É a primeira mulher negra eleita deputada federal pelo Paraná.