A fome não tem hora nem lugar

Projeto de lei que proíbe e multa quem doar alimentos sem autorização da prefeitura é um retrato da política higienista que governa Curitiba

Em meio ao aumento de casos e mortes por Covid-19, o Brasil vive outra epidemia, onde 19 milhões de brasileiros estão passando fome. Os dados são do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgados pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).

Em Curitiba, a situação não é diferente. É visível o crescimento do número de pessoas em situação de vulnerabilidade social e em situação de rua. Para enfrentar essa situação, a ideia apresentada pelo prefeito Rafael Greca (DEM) é proibir e multar quem distribuir alimentos sem autorização da prefeitura.

A proposta é tão absurda que ganhou as manchetes dos principais veículos de comunicação do Brasil. Em um momento onde o poder público deveria incentivar a solidariedade e unir forças para enfrentar a fome, Greca demonstrou, mais uma vez, a marca higienista da sua maneira de administrar a cidade, tentando esconder os problemas sociais, ao invés de resolvê-los.

Em sua defesa, o prefeito da capital paranaense diz que foi mal interpretado, que a intenção seria apenas a de organizar a distribuição dos alimentos. Segundo ele, da forma como é feita atualmente, restos de comida caem nas vias públicas. Ou seja, a administração está mais preocupada com o grão de arroz que cai nos pontos turísticos do que com a dor de quem tem fome e não é atendido pelos programas de assistência social do seu governo.

Mesmo com a reprovação dos mais diversos setores da sociedade curitibana, o prefeito recusou o pedido para retirar o projeto enviado à Câmara de Vereadores, chamado por ele de Mesa Solidária. Em comum entre a proposta e o comportamento de Greca está o autoritarismo. Aliás, “Mesa Autoritária” é o nome que faz jus à essa iniciativa.

O projeto não é ruim apenas porque tenta criminalizar a fome e a compaixão.  É ruim também porque desconsidera todo o trabalho realizado pela sociedade. Os movimentos populares, igrejas, Conselho Municipal de Segurança Alimentar e demais entidades que realizam ação social na cidade sequer foram ouvidos. Curitiba não possui nem mesmo um censo da população em situação de rua.

O fato é que, desde 2016, voltamos para o mapa da fome e, neste momento de crise sanitária, essa situação se aprofunda. Recentemente, participei de uma ação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que distribuiu marmitas no centro de Curitiba. Na fila, não havia apenas moradores em situação de rua. Eu vi mulheres, grávidas, crianças, trabalhadores informais e desempregados. Pessoas que, se dependessem da proposta autoritária da prefeitura, estariam sem ter o que comer.

Por isso, ao invés de exigir que as pessoas tenham cadastro e a aprovação do governo para que possam ser solidárias, a administração municipal deveria implementar a renda básica emergencial, seguindo o exemplo de outras cidades. Essa medida, dentro de um planejamento para enfrentamento da crise, é urgente, combate a fome, reduz as desigualdades e Curitiba tem condições de fazer.

A fome não tem hora, não tem data, nem lugar, como quer o prefeito transformar em lei. Queremos e exigimos menos propaganda e mais ações concretas para que Curitiba deixe de ser a cidade dos pontos turísticos para se transformar em um lugar sem fome e com igualdade de oportunidades para todas e todos.


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