Não há espaço para os outros

O adversário, vitorioso, não é analisado de verdade, não em canais nacionais. Não há espaço para ele e sua vitória de 3x0

O que um jogo de futebol te diz sobre o Brasil? Claro, muita coisa. Se você, de repente, não se liga nesse esporte, talvez a frase até soe exagerada, irrefletida, mas não. Um jogo de futebol pode sim ilustrar muito do que é este país, até mesmo historicamente.

Em primeiro lugar, uma partida de futebol profissional não acontece apenas dentro de campo. O jogo é uma peça em uma enorme engrenagem que envolve estruturas milionárias, desde patrocinadores, anunciantes, emissoras de rádio e televisão até sites de apostas, que movimentam cifras delirantes em algumas partidas.

Quarta-feira (27) à noite, essa estrutura se convulsionou no Brasil. Era uma partida decisiva envolvendo um clube tradicional, multicampeão, que possui uma imensa torcida. Prato cheio para contratos de publicidade, ingressos caros… e, sobretudo, para a fidelização de uma clientela imensa: sua torcida. Era a oportunidade de mostrar uma vitória do clube, reforçar o mito do clube popular e invencível, criando assim, aos poucos, bases reais para esse mito: o time vence, mais crianças torcem para ele, mais consumidores dessa marca e dessa estrutura haverá no futuro.

A própria cobertura nos poucos espaços nacionais (canais de TV e alguns sites especializados) mal disfarçava o amplo apoio ao clube tradicional. As análises da partida aconteciam como se, do outro lado, não houvesse um time com igual status. Tem que ser assim, é sempre essa a narrativa: “nós” contra “eles”. Se você mora no Rio de Janeiro, cidade do clube tradicional, ou se você mora em Teresina, Manaus, Cuiabá, não importa. É preciso manter a noção (falsa, mas lucrativa) de unidade. Chamam de “nação” essa torcida, e não é por acaso. Palavras como essa, criadas no século XIX, tem esse efeito tão benéfico para a publicidade.

Mas a máquina precisa da vitória. Não é obrigatório o espetáculo, claro, mas a vitória é fundamental. O espetáculo se cria: se o time tradicional vencer jogando mal, fala-se em superação. Se vencer com lances duvidosos, fala-se em arbitragem. Se vencer injustamente de qualquer forma, fala-se em “estrela”, “camisa”, “mística”, “tradição”. A vitória é uma condição sine qua non para a movimentação normal dessa máquina milionária.

É como se houvesse uma “elite” no futebol. Baseada em tradição, certos times são deliberadamente obrigados a vencer, para manter a normalidade das coisas. Uma derrota do time tradicional, para outro que “não o seja”, é sempre tratada como “vexame”, “tropeço”. Tropeça-se naquilo que é menor do que você. É apenas um acidente. As condições de jogo vem prescritas antes da partida, e os jogadores são obrigados a simplesmente cumprir isso. Como na sociedade brasileira: há pessoas e pessoas, ainda que a lei diga que todos são iguais. Exceções só confirmam a regra: médicos negros, empresárias de sucesso, lgbt’s respeitados independente da sua sexualidade: exceções.

O time tradicional, quarta, perante os olhos de toda essa estrutura, foi derrotado por 3×0. Para um outro time que não pertence à “elite do futebol”.

A máquina sabe trabalhar com exceções. Acompanho vários canais de análise na manhã seguinte. “Derrota humilhante”, “vexame”, “tropeço”. Analisam-se as razões da derrota do time tradicional, e não as razões da vitória do seu adversário. Os jogadores do time carioca falharam em algo. A arbitragem falhou em algo. O técnico falhou em algo. A torcida não apoiou o suficiente.

O adversário, vitorioso, não é analisado de verdade, não em canais nacionais. Não há espaço para ele e sua vitória de 3×0 (um placar normalmente incontestável em futebol). A não ser algumas notas de rodapé: ele foi aplicado.

Não há espaço para esse outro time. A elite vencerá outro dia, agora ela apenas teve um tropeço.

Na saída, o principal ídolo do time tradicional exigiu ser entrevistado, à beira do gramado, e disse às câmeras: “temos que saber perder também”. Ele joga, joga, mas não entende porque joga: nunca saberão perder. A maioria dessas pessoas já perde em quase tudo na vida. No futebol, lhes é vendida a ilusão de que podem vencer sempre. O futebol é o único lugar onde a maioria deles pode sonhar, e apenas sonhar, fazer parte de algum tipo de elite. Buscar isso na vida, para eles, não é uma opção. É mais fácil ligar a TV, abrir uma cerveja, e ser alegre durante 90 minutos.

Às vezes, nem isso.

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