Um homem só (A single man) – Christhoper Isherwood

Você verá que “solteiro” seria uma escolha melhor. Mas bora lá

Há algumas obras capitais para o movimento queer americano (e, eu diria, fora dos Estados Unidos). Quem não leu The city and the pilar e Giovani’s room, por exemplo, sequer começou uma pesquisa séria sobre obras fundamentais de qualquer movimento LGBT naquele meio, em particular a letra “g” dessa sigla. Logicamente, algumas obras e autores serão de muita importância para estudar como os gays foram representados na literatura, mas digamos que muitas obras são como sóis ao redor dos quais gravitam outras tantas, por aproximação ou distanciamento, a depender da força gravitacional de cada uma. Hoje teremos tantas obras outras, como Me chame pelo seu nome, mas de todo modo fico pensando nessas obras maestras que traduzem seu tempo. E daí a importância delas.

Homens gays na literatura não são nenhuma novidade nem na China nem no Ocidente: vc deve ter ouvido falar dos “mangas cortadas” chineses e da passagem sobre um grupo acintosamente afeminado em Apuleio, em seu Asno de Ouro. Como normalidade, proibição ou elogio, o homem gay – efeminado ou não – aparece em todas as literaturas do mundo, com outros nomes e concepções de gênero, porque nossa concepção de “gay” é contemporânea, ocidental, eurocêntrica e temo que… WASP.

Houve um tempo, no entanto, que homens gays eram retratados como malditos (as mulheres lésbicas também: mesmo em romances como The Well of Loneliness, as mulheres lésbicas ou homens trans são seres anormais, problemáticos, depressivos). A indústria cultural americana levaria muitas décadas para expor um personagem gay (em livros, filmes, peças teatrais, etc.) que fosse “apenas” gay. Ou era o sujeito caricato (preferencialmente afeminado, que rende as piadas mais idiotas e é confundido até mesmo no meio crítico como figura empoderada da sua sexualidade) ou o sujeito deprimido, amaldiçoado, suicida, ou, pior ainda, um assassino revoltante. Homens trans, então, pareciam seres de outro planeta! Daí a importância de Gore Vidal, James Baldwin e Christopher Isherwood (este era inglês, em verdade, mas foi morar na Califórnia). Embora as três personagens principais desses três romances americanos aqui citados penem com a realidade que os cerca – nada diferente de milhões de gays mundo afora – e embora eles não sejam pessoas exatamente felizes com sua condição, a literatura ganhava personagens centrais gays. Obras importantes, como The Temple (escritor alemão, mas que vendeu seus direitos para os americanos) ou eram proibidas em seus países de origem ou eram publicadas em pequenas tiragens e logo consideradas pornográficas ou indesejáveis. Falo de homens gays, mas o mesmo ocorreu com as obras sobre mulheres lésbicas, como disse acima. E o mercado editorial esperaria décadas para que houvesse um livro (teórico ou não) sobre pessoas transgênero.

Do outro lado do Atlântico, então, a situação não é melhor: ou o escritor é maldito (digamos, literalmente, ao menos para a polícia, um sujeito como Joe Orton ou um sujeito como Jean Genet, embora as diferenças entre esses dois autores) ou é aquele intelectual amado “a despeito de” escrever sobre gays, para gays, como gay. Se Memórias de Adriano não causa certo escândalo, é mais pelo fato de tratar de um imperador romano e de remeter a certa fantasia sexual sobre gregos e romanos. Autores como Gide nem são citados como gays ou como autores de livros sobre gays nas premiações, e autores como Thomas Mann sequer são mencionados nas listas de autores gays, embora o grande número de pistas que ele deixe/tenha deixado em seus romances. E assim no Japão, com Mishima, no Brasil ou em Porto Rico, os autores gays (que escrevem sobre gays ou para gays) são silenciados, subestimados ou ainda apenas enfraquecidos no que têm de melhor para investigar literariamente.

Isherwood e seu amigo Auden são mais ousados. Auden causa escândalo ao agradecer a indicação para um cargo numa universidade – para horror ou delícia da plateia – citando seu companheiro/marido/namorado. E falo de Auden e mesmo de Isherwood porque aqui, em A Single Man, temos um professor universitário, que precisa se esconder o tempo todo, menos de si mesmo e de um ou outro, para que consiga sobreviver sem os riscos de ser gay numa sociedade homofóbica e violenta. Para maior clareza sobre esse livro, eu sugiro a leitura simultânea de The Temple, sobretudo sobre a explicação do autor no prefácio, feita já lá pelos anos 1980. A leitura de Stephen Spender interessa para um entendimento mais claro do que seja A Single Man. Aliás, eu diria que uma obra ilumina a outra. As personagens de The Temple são inspiradas em Isherwood, Auden, List e no próprio Spender. E é interessante observar a fantasia de liderdade tanto em um livro quanto no outro: a Alemanha pré-guerra, onde foi morar Isherwood jovem, e a Califórnia dos anos 1960, onde estão o próprio Ishermood e seu professor viúvo. Não parece ter mudado muita coisa em décadas.

É caso de ler essas duas obras e pensar nas diferenças: como está a Berlim ordoliberal de hoje e como está a costa oeste americana, pós-Trump.

Camp

João Silvério Trevisan lembra muito bem o conceito levantado por Susan Sontag para identificar certo tipo de modus operandi do discurso gay – e Isherwood é um exemplo fantástico para isso. Trata-se do “camp”. Quando se fala em “camp” talvez venha à mente Carmen Miranda, algum baile do Met ou ainda desfiles do orgulho LGBT. Mas não: o conceito de “camp” ultrapassa esses exotismos formais. Tem a ver, sim, com o exagero, mas também com o deboche e – afirmo-o eu – como um mecanismo de defesa e de retorno à sociedade ao que ela deu aos gays durante séculos: a violência simbólica.

Este professor universitário, este single man, não seria a primeira personagem debochada ou virulenta de que se tem notícia. Em verdade, ele não é debochado e virulento o tempo todo. Muito ao contrário, ele alterna o comentário mordaz (geralmente mescla de erudição e vulgaridade do mundo) com delicadeza. Mas sempre perspicaz. O “camp” tem muito disso e há muito disso nos gays, sejam eles afetados ou não. Não é de se espantar que muita gente aponte “certo ar gay” em personagens como Hercule Poirot, justamente por isso: misto de afetação, mordacidade, perspicácia, delicadeza (a cena mais icônica de Poirot é ele a escolher uma perfeita meia de seda para presentear uma mulher, algo camp ou queer). E não à toa o grande deus amado por tantos escritores e artistas gays seja justamente Oscar Wilde. Há algo de Wilde nesse professor que abandona a Inglaterra para morar na Califórnia, sob o sol, a fugir de um continente destroçado por tanta coisa ruim que esse mesmo continente fez nascer sob outro sol, o de Satã.

Situando o livro e sua narrativa, ela se passa antes dos acontecimentos de 1968 e antes da explosão de certos movimentos pela liberdade nos EUA. Embora o professor lecione numa universidade – e numa universidade da Califórnia – ele vive num território de gente vulgar e conservadora. Ser um homem de idade solteiro num lugar desses gera todo tipo de comentário e situações. Nada de novo aí. Mas talvez pela primeira vez tenhamos uma personagem que não está no início das descobertas amorosas (ou na juventude, como em Gore Vidal e em Baldwin) e sim no outono da vida. Se ser gay jovem já é um problema social na América dos anos 1960, imagine-se ser um homem velho, e que acabou de perder seu companheiro num acidente de carro.

Se você conhece a adaptação de Tom Ford para o cinema, esqueça. Tom Ford fez outra coisa. Conta outra história, com outras personagens. Tom Ford fez um belíssimo filme, mas retirou de Isherwood o que ele tem de melhor para dizer. Trevisan desanca Tom Ford, mas o filme tem muitas qualidades, outras, que não as de Isherwood.

A edição da Cia da Letras tem alguns descuidos de tradução, mas principalmente de revisão. A falecida Cosac também andava relaxando nos cuidados de revisão nos estertores da editora. Uma pena. Se vc lê no original, prefira.

The Temple foi lançado pela Editora 34. A edição é belíssima, com fotos de Herbert List, embora a tradução seja um tantinho equivocada aqui e ali. Mas segue bem no mais.

Nada de grandes invenções literárias nessas duas obras. Não falamos aqui dos gênios do começo do modernismo, afinal. Mas, como disse acima, obras capitais para quaisquer estudos queer.

Isherwood tem outras obras de interesse, claro, como Adeus a Berlim. Há outras obras no Brasil, menores, como O memorial, e escritos em que ele mostra uma de suas paixões: religiões orientais. Para especialistas e admiradores apaixonados .

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