Torto Arado

O ligeiro e o profundo: pequenas literaturas ou grandes discursos?

Antes de comentar o livro, duas digressões: 1) alguns amigos me perguntam por que não escrevo sobre “obras pequenas”; ao mesmo tempo alguns me perguntam por que escrevo sobre “obras pequenas”. Isso quer dizer que a ideia (não direi um conceito) de “obra pequena” persiste, depois de tanta tinta derramada sobre o que seja literatura, sobre o que é canônico, sobre o que é um “clássico”. 2) o objetivo da coluna era falar de literatura, de boa literatura, claro. E por isso, depois de muitos debates com colegas, optei por “Papel Máquina” (pensando em Derrida) e “Altas Literaturas” (Leyla Perrone-Moysés).

Seja lá o que for isso, uma grande literatura, eu me aventurei a falar de grandes livros e de grandes autores. Para falar de grandes, por oposição, afastamento, similaridades, distanciamentos, eu precisava falar de pequenos, seja lá o que isso for também.

De todo modo, amigos próximos, por muito queridos que sejam, confundem meu gosto próprio com análises profissionais, após décadas de leitura de autores e teoria. Digo isso porque, certa feita, fiz uma crítica a uma autora canadense muito querida entre jovens, principalmente, e só não fui atacado na rua porque estamos em pandemia.

Esta coluna é para falar de literatura – e não do que gosto ou não por achismo.

Toda crítica é complexa, passa por inúmeros e distintos filtros – e ela é necessária, seja para divulgação de obras, seja para burlar o poder do mercado, seja ainda para separar o joio do trigo mesmo, para leitores que precisam de outro ponto de vista. Acima de tudo, a crítica (de arte, que também é meu ofício, seja a crítica de cinema, que não é meu ofício) corrobora para a discussão da arte e do estado da arte (o trocadilho é horrível, mas é bom).

Maria Helena de Moura Neves.

Dois autores ficaram rondando minha cabeça antes de escrever isso tudo (como o silêncio na cabeça de Beethoven, segundo poema famoso de Derek Walcott), e queria citá-los: Maria Helena de Moura Neves, em A Gramática: História, Teoria e Análise, Ensino, conta como na Grécia antiga surgiu a figura do “gramático”, um sujeito encarregado de escolher, na variedade do grego, aquilo que seria adequado ou “bonito”. Tal escolha era, no mínimo, arbitrária.

Já Kracauer, em O Ornamento de Massa, comenta que é mais fácil analisar “as discretas manifestações de superfície” de uma determinada época, para entendê-la, do que tentar investigar “os juízos da época sobre si mesma”. Estes não dariam “acesso ao conteúdo fundamental existente” por não terem a “natureza inconsciente daquelas”. Tanto por um motivo (a escolha arbitrária, que seja), tanto pelo outro (investigar o pequeno, o periférico, ou outsider), interesso-me em buscar novos autores e escrever sobre os já consagrados.

Dito isso, vamos lá.

Torto Arado traz diversas discussões de interesse, que vão bem além da escolha arbitrária por obras boas, médias ou ruins. Penso que o que esteja em jogo não é apontar com o dedo, e sim deslizá-lo na areia para fazer jardins japoneses em miniatura.

Grande parte da crítica se interessou pelo fato de o livro ter vendido bem. Isso é de se festejar mesmo, num país que consome muitos livros, mas pouca literatura. Os mesmos críticos também elogiaram o conteúdo do livro (alguns se esquecendo de que outras obras já haviam discutido tal conteúdo, o que não quer dizer que a problemática abarcada por Itamar Vieira Junior seja esgotável; muito pelo contrário), as personagens negras, o passado escravista, o mundo rural. Precisamos de obras que tratem desses assuntos, de fato, cada vez mais.

Ao mesmo tempo, outros comentaristas lembraram que o romance tem poucos personagens, uma estrutura de novela ou seriado, com capítulos curtos e finalizações “de impacto”, linguagem simples e direta – e isso tudo explicaria o sucesso do livro. O sucesso adviria da simplicidade da obra, seu fácil acesso, a leitura rápida.

É de suma importância que o mercado editorial dê a voz ao sujeito subalternizado. Poderia terminar o texto aqui. Mas não dormiria. Há duas questões que eu gostaria de trazer à baila: a negritude na literatura e a linguagem literária.

Quando os autores que discutem a negritude (ou a branquitude) afirmam que devemos enegrecer o discurso, o que será que querem dizer? Trazer para o centro o discurso negro: suas vivências, culturas, línguas, linguagens, filosofia, religião. Fazer com que o discurso africano tenha tanto poder de embasar uma filosofia, um discurso, um modo de dizer, quanto o discurso eurocêntrico. Tal tarefa é complexa, haja vista que um número considerável de estudiosos tem formação europeia – ou em outros centros cujos discursos fundadores e de divulgação de pesquisas são eurocêntricos. Enegrecer o discurso não seria algo feito da noite para o dia e talvez tampouco de uma geração para outra. E não seria apenas um “caminho de mão dupla” e sim uma série de estradas que se encontram aqui e ali, e em outros momentos se afastam de vez. Basicamente, estou pensando em Mbembe e Gilroy, aqui.

Tanto o cinema quanto a televisão vivem cometendo gafes em relação a esse “empoderamento”. Não raramente, o negro, mesmo protagonista, é marginal, bandido, assassino, problemático, subalterno. E o que mais ouço é: “mas é a realidade”. A realidade é complexa, de fato, mas se o argumento é esse, corremos o risco de voltar a questões como “como pode uma bailarina negra interpretar Julieta” ou “um ator negro Shakespeare” ou 007… Ou seja, tergiversa-se. As questões são bem de outra ordem. Mais profundas, mais espinhosas e mais dolorosas.

Enegrecer o discurso não pode ser trazer as questões negras ao epicentro dos produtor de divulgação (as editoras, o cinema, o teatro, a dança, o meio político) e fazer com que ele – o sujeito negro – continue no mesmo lugar, ou pior, de forma caricata, caricatural, como “êmbolo” do discurso alheio, catapulta ou escora.

Em Torto Arado não temos protagonistas violentas ou “marginais” no sentido pejorativo. Não é isso. Temos um romance muito respeitoso. Isso é fato. Gostaria de ressaltar isso. No entanto, dizer que é uma obra-prima da atual produção em língua portuguesa é um exagero. E aí entra a segunda questão, a linguagem literária.

Faulkner, Jordi Soler, Ana Maria Gonçalves, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Alice Wlaker, Raduan Nassar, enfim, todos que escolheram escrever sobre o interior, o mundo rural, o universo afro-brasileiro ou o afro-americano tiveram dúvidas na hora de escolher uma linguagem, uma língua dentro da língua, uma variação vocabular, sintática, discursiva, que não soasse absurda, abstrata, preconceituosa, alienada, falsa, risível.

Um e outro optaram por uma linguagem inventada com todas as críticas advindas dessa escolha; um arremedo da linguagem natura, mas que não fosse um tratado de sociolinguística; variação entre o padrão e não padrão, o culto e não culto; às vezes pequenos ajustes resolvidos em nota de rodapé. Mas a linguagem não é algo em si mesma, não está desconexa da realidade, não é um conjunto banal de escolhas. Em Guimarães ou Graciliano, ela reproduz ou um mundo inventado, no caso do primeiro, místico, religioso, filosófico, ou, no caso do segundo, um universo sertanejo com braços no jornalismo ou na historiografia. Dois mundos irreais? Sim, pois que literatura! Jordi Soler opta pela linguagem formal, Walker opta por recursos que tentam traduzir uma linguagem cortada, pobre de recursos, ignorada pelas elites. E assim são as escolhas. Algumas são muito felizes do ponto de vista literário (do ponto de vista estético, do ponto de vista histórico, do ponto de vista do que é fazer arte, e algo similar pode ocorrer na dança, no cinema, nas artes visuais).

Jordi Soler.

E não nego, dessa vez pensando em Kracauer, que muito do sucesso do livro advenha justamente de suas falhas (conversei com vários colegas críticos e muitos comentaram comigo que “editariam” a obra, ou seja, cortariam trechos, melhorariam certos parágrafos, etc.), porque simplesmente estamos vivendo uma/numa época em que o gosto pelo trabalho com a linguagem é considerado antiquado, falso… e distante da realidade. Grande parte dos leitores prefere obras “rápidas”, “ligeiras”, breves – e sinceramente não vejo problema nisso. Talvez a semelhança – talvez – com um roteiro de televisão explique parte de seu sucesso. Isso não que dizer que não haja roteiros muito bons ou complexos, como o caso de Alias Grace ou a refilmagem de O Rebu ou ainda a ousadia quase brejeira de Cidade Invisível.

Eu seria injusto se dissesse que o romance é desimportante, justamente porque que ele é uma marca muito poderosa do leitor atual, o que ele busca, o que ele deseja ver (e nunca fui de nenhuma área de “recepção”, nem curto isso). Obras desse porte são “exercícios de resistência”, no sentido proposto por Éric Alliez e Maurizio Lazzarato, em Guerras e Capital. Resistência aos sistemas, ao neoliberalismo, aos discursos hegemônicos, etc.

Penso tal resistência, também, em pelo menos dois níveis, distintos entre si mas que dialogam: primeiro, contra o domínio do corpo, que vem de tempos imemoriais e, no Novo Mundo, com força crudelíssima desde o século XV-XVI; depois, contra o mercado mesmo, de modo que concursos e editoras escolham bem as obras que querem alçar como avatares do seu tempo.


Para ir além

A Resistência, de Julián Fuks
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Sobre o/a autor/a

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