Comece a ler Annie Ernaux pelo livro “O lugar”

Autora escreve sobre a vergonha de ser “do interior”, de uma família que não usa a língua padrão e abraça o catolicismo radical

Este texto fala sobre a escritora francesa Annie Ernaux e o livro “O lugar”.

Marguerite Duras certa vez escreveu que achava absurdo as cartas pessoais serem escritas como documentos para a posteridade. Cartas pessoais deveriam ser cartas pessoais e não documentos literários. Creio que falasse nada mais nada menos do que de Simone de Beauvoir e Sartre, se não me falha a memória. Por essa época, alguém terá comentado comigo – então me perdoem a falha de memória – que ela não gostava de ser confundida com outra Marguerite, a Yourcenar. Creio que nada contra a autora de A obra em negro e sim com o modo erudito e especialmente cuidadoso com que Yourcenar produzia suas obras, às vezes esperando décadas para que um texto saísse como ela queria.

Leia mais sobre Annie Ernaux.

Para um historiador, por exemplo, não interessam os aspectos literários, a princípio – e sim o valor de um documento. E lembro que alguém da antiga Ilustrada tenha entrado nessa discussão, afinal as cartas de Beauvoir eram, antes de mais nada, documentos históricos de interesse.

Duras preferia uma escrita limpa, nua, sem grandes recursos linguísticos, e por isso e por outras razões grande parte da crítica sempre acabava lembrando que sua escrita tinha a ver com a escrita de roteiros de cinema, como se a escrita de um roteiro não pudesse também ser trabalhada, rica, complexa, cheia de recursos linguísticos. Há uma confusão aí bem comum da crítica não muito acostumada às análises linguísticas e da teoria literária. Uma escrita simples não necessariamente é pobre, ou simplista, ou “menor”. As obras de Duras, por exemplo, em particular O amante, são lindíssimas.

Mas não é de se censurar quem assim pensa, digo, censurar com tanto entusiasmo. A literatura francesa, desde os primeiros documentos conhecidos dessa língua (dos mais antigos de uma língua neolatina) é rica numa cultura da “boa escrita”. E a literatura francesa, na tradição ocidental, tem um inegável peso, senão normativo, de comparação: ela acaba por espelhar listas, cânones, etc.

De uns tempos para cá, a mesma língua do grupo Olipo encontrou escritores em busca de uma linguagem mais limpa: Mondino e Le Clézio, por exemplo, mais aquele que este, talvez sejam exemplos disso – e aí entra a história de Ernaux, nascida no mesmo ano de Le Clézio, inclusive.  Há mais confusões do que clarezas sobre sua linguagem, e a partir dos anos 1980 seus livros ganharam muitas pesquisas e teses. Não as li, evidentemente.

“Ao escrever[mos], caminha-se no limite entre reconstruir um modo de vida em geral tratado como inferior e denunciar a condição alienante que o acompanha.”

Dito isso, algumas palavras sobre “O lugar” são importantes. Eu começaria a leitura de Annie Ernaux por esse livro. O título, inclusive, meio dúbio, pode remeter justamente a um lugar a partir do qual ela falará nos demais. Primeiramente, esqueça o que se fala da literatura dela, que seria uma literatura sociológica e biográfica “porque transforma o espaço em personagem”. Qualquer manual mequetrefe de literatura lida com o espaço (social, psicológico). Outros escritores falam de seus pais com igual devoção ou limpidez, e tratarão do seu tempo, edulcorando ou não os acontecimentos, mas sempre será literatura.

Aqui, uma observação de quem defendeu tese sobre isso: os limites entre literatura, história e sociologia são conhecidos, assim, ao tratarmos deles. Quando vamos ver de perto, eles somem. É mais ou menos como uma miragem.

A autora nasceu durante a Segunda Guerra. Faz um levantamento da vida do pai, que chegou à vida adulta no entre-guerras. Descreve como uma família do interior da França viveu esses anos e os seguintes: do campo para a vida operária e daí para um pequeno negócio.

Há muitos pontos de interesse nessa obra. Autores que tentaram uma literatura “mínima” na modernidade são muitos e díspares: vão de István Örkéni a Dalton Trevisan, mas não é o caso aqui. Por mais que autora tente se livrar do que pode ser “comovente” ou “cativante”, digamos que ela não consegue, felizmente. A leitura será comovente e cativante, justamente porque parece falar do pai de cada leitor, principalmente para leitores acima dos 40/50 anos e que têm laços com o interior do país. Aqui temos uma situação impressionante: a Normandia dos anos 1920-1960 de Ernaux não é tão diferente do interior do Brasil dessa época. Não costumo comparar minha vida com a dos escritores que analiso, mas o pai dela foi meu pai também. Lendo cada página, eu me dizia: meu pai aqui, ali e ali também.

A vergonha de ser “do interior”, o uso de uma língua não padrão, o catolicismo radical, os primeiros negócios de quem vem do campo, o olhar do cidadão “de bem”, já instalado nas cidades, mas de mesmas origens, as casas de moradia ainda feitas com técnicas ancestrais, tudo isso faz parte da narrativa. Primeira vez? Não saberia dizer, mas muito precioso.

A literatura moderna descobriu o homem comum – e isso não é de hoje. Descobriu também que pequenos fragmentos do cotidiano poderiam ser transformados em alta literatura (Woolf, Lispector), e isso ocorre com Ernaux. O homem comum ganha ali um espaço na grande literatura talvez por isso mesmo, por ser comum e representar um todo.

Já li comentários como “Ernaux escreve sem piedade sobre as pessoas e si mesma”. Não diria que ela é uma alma piedosa e é exatamente por isso que sua literatura ganha um peso extra. Não há autocomiseração em sua escrita. Ela tenta fazer com que a escrita sobre as coisas do mundo seja apenas uma escrita e as coisas do mundo sejam apenas coisas do mundo. Para os teóricos da linguagem, sabe-se que isso não é possível, mas o resultado é lindo.

Ernaux já disse em mais de uma entrevista que sua escrita é política. Cita textos de Bourdieu que teriam trazido luz para o que ela queria escrever, como Os herdeiros. De fato, assim colocado, há de se pensar no seu processo de escrita, tão próximo aqui e ali de uma investigação sociológica.

Muita gente me pergunta sobre obras que geram mais discussões do que exatamente pela sua importância literária… Bem; não é o caso de Ernaux, certamente. E, de todo modo, se uma obra “pequena” gera grandes discussões, ela é uma das contradições dos estudos literários, pois de um modo ou de outro ela é marca de um tempo. Quase todo mundo já deve ter ouvido a piada que Raquel de Queiroz contava: sua mãe lhe dizia que já era hora de escrever livros que parassem em pé.

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