Murakami: O Assassinato do comendador, vol. 1

“O coração humano é um pássaro noturno”

Já disse várias vezes (já fiz até um “manual” de leitura para ele), mas não custa repetir, que, em Murakami, o saber está na teratologia. Não vai ser encontrado nas academias e nas bibliotecas (embora, ali também), mas o saber está onde menos se espera, principalmente nos lugares menosprezados pela elite cultural, a despeito do gosto erudito por música – e artes em geral – que aparece nas obras do autor japonês.

Já disse aqui também que as obras de Murakami são construídas em estratos. Não falo da leitura ou da “recepção” às obras de Murakami. Qualquer obra literária pode ser lida em camadas – e a leitura erudita dependerá do leitor e não do escritor. Digo que as obras de Murakami são construídas com certa complexidade em camadas para atingirem diferentes leitores. Não é de se estranhar que no meio de seu vasto time de admiradores estes gostem de aspectos bem diferentes entre si no que tange às obras dele: o policialesco, o fantástico, o intimismo, a intertextualidade/interdiscursividade vibrante dos romances e contos, a habilidade desconcertante que ele tem para criar personagens.

Eu costumo lembrar que, para quem gostaria de leituras mais profundas de suas obras, seria interessante ter em mente que grande parte delas parte de uma base que é a do sonho tantálico ou a do sonho sisífico. Em grande parte das vezes, as personagens não conseguem atingir certo objetivo, mesmo que ele esteja perto. Isso causa uma angústia crescente, uma busca pela verdade, pelo acerto, pelo apaziguamento do espírito. Não é pouco. Não estranhe, portanto, se você encontrar resquícios de leituras de Bataille e Mishima em seus relatos. Essas personagens perturbadas por um certo espinho no flanco ou por um acontecimento inesperado precisarão encontrar respostas, que não virão de pronto, e serão encontradas após percorrerem um caminho tortuoso, repleto de descobertas igualmente desconcertantes (e muito fora do que uma academia científica poderia explicar). O segredo está ali, diz ele, seu narrador, em todo lugar, talvez, e eu arriscaria dizer que há uma leitura religiosa do mundo nessa busca e nessa construção. Para explicar a isso, seria importante estudarmos um pouco mais de perto religiões – e não caberia explicar aqui, infelizmente, tal visão de mundo.

Há mundos dentro de mundos em suas narrativas, assim como há portais para se acessá-los. Para o neófito nas artes da busca, os mundos descobertos podem ser assustadores, mas depois haverá calmaria. Há portas secretas para tais mundos, que podem ser poços, alçapões, um parque de diversões abandonado (certamente, você já viu isso em algum livro ou filme, certo? É isso mesmo: ele dialoga com textos da tradição e também com filmes, livros da modernidade, as narrativas mais variadas, afinal, seria incoerente da parte dele acreditar num mundo de maravilhas misteriosas advindas de uma só fonte).

O leitor vai deparar, aqui, com algumas obsessões do escritor: uma pessoa sem rosto ou sem “cor” (os ideogramas para “sem cor” diferem dos do “Tsukuru Tazaki”, mas a ideia é similar), outra que tem os cabelos totalmente brancos, a despeito da idade, amantes comuns, corpos comuns, música erudita, pintura (aqui com mais força), história japonesa, o diálogo com o Ocidente a partir do XIX, fundamentalmente, o enigma da chegada/partida, histórias do sobrenatural de diversas tradições.

Para mim, Murakami é maior quando consegue juntar numa mesma obra duas especialidades suas: o mistério e a investigação humana. Dentre os autores vivos, Murakami tem uma raríssima habilidade, que já citei acima, a de construir personagens incríveis. [Você prefere Dostoiévski, Mann ou Machado, certo? São genialidades distintas.]

Costumo também dizer, sem querer finalizar, que a genialidade de Murakami em criar situações fantásticas vem de uma longa tradição literária: Luciano colocou mortos conversando no Hades, Rabelais criou mundos fantásticos, Francesco Colonna criou um romance onírico, Rosa um sertão místico e por aí vai.

Ler Murakami sempre é um novo crédito para a possibilidade da beleza. Estamos precisando disso como nunca.

O Assassinato do Comendador é um romance em dois volumes, ambos já traduzidos para o português brasileiro. Um pintor abandonado pela mulher descobrirá coisas sobre sua própria vida num universo paralelo em que música erudita (Mozart) se mistura com outra arte amada por Murakami, a pintura. À procura, do eu, do grande Outro, do pai, eis mais uma obra de Murakami em que as realidades se misturam, cabendo ao leitor decifrar esse emaranhado. Não se trata do melhor romance do autor japonês, mas em se tratando de Murakami, tudo vale a pena.

Se quiser o tutorialzinho citado no começo do texto, eis:

Se há interesse no seu horizonte de leitura, caro leitor, por Haruki Murakami, aconselho alguns possíveis diálogos: 1) literatura japonesa e chinesa: pense em Soseki, um dos primeiros “modernos” do Japão, e Lu Xun, que Murakami diz admirar, um dos primeiros “modernos” da China; 2) uma certa literatura europeia: pense que o autor estudou esse tema, que admira diversos autores europeus, de diferente épocas e idiomas, e que as citações de autores ocidentais são abundantes no texto de Murakami, assim como os diálogos com; 3) a ponte com a música: pense na música erudita, em compositores não muito “fáceis” como Janáček, o jazz, a música pop, notadamente a dos anos 1960, preponderantemente a inglesa; 4) a mística japonesa: histórias e lendas do Japão antigo; se não conhece, parta de Lafcádio Hearn, também conhecido por Yakumo Koisumi; 5) o surrealismo ou o onírico, a loucura, a demência, insanidades em geral, enfim, e o efeito psicotrópico (sei que são coisas distintas, mas não há exatamente um fio que se possa puxar para desembramar o novelo da escrita dele sobre tais aspectos); 6) o universo ciberculto, com o qual dialoga num nível muito profundo em que técnica de escrita se entrelaça com o conteúdo; 7) os universos paralelos possíveis, de diversas literaturas; 8) o mundo do além (fantasmas de soldados, por exemplo, da II Grande Guerra no meio da narrativa); 9) o universo dos games, dos mangás, das narrativas modernas japonesas (e coreanas e chinesas e tailandesas) de um universo mágico, fantástico, surreal, irreal, da ficção científica, o nome com o qual você se sentir mais a vontade para usar, mas possível no campo das artes; se quiser comparar com outros artistas orientais, sugiro Kim Ki Duk, Park Chan-wook, Apichatpong Weerasethakul e Takashi Murakami, seu conterrâneo. Nenhum desses (cineastas e artista plástico) tem obra fácil de absorver — todos são misteriosos em alguns momentos, pois as obras contemporâneas prescindem de respostas fechadas e acabadas; 10) o discurso das áreas “psi”; 11) vários gêneros romanescos, entre eles o policial…

E poderíamos colocar as ausências, começando-se pelo silêncio em relação à literatura americana, por exemplo, em muitas obras. (Quando falo em silêncio, não digo que não haja presença. O próprio autor já citou Faulkner como alguém que admira. E há quem o coloque ombro a ombro com Pinchon. Eu fujo dessa sala de bate-papo.)

Como segundo passo, eu sugiro que se separem as obras de Murakami, provisoriamente, em três grupos: a) as mais emotivas e que tratam de relacionamentos entre casais, como Norwegian Wood; b) os romances mais conceituais, como Crônica do Pássaro de Corda; c) os de entretenimento, como 1Q84. Mas devagar com o andor: em romances como Minha Querida Sputnik e Kafka à Beira-Mar tudo isso está entrelaçado, às vezes sobressaindo mais uma escolha que outra.

Escolher a primeira obra de um autor é um risco. Costumo dizer que se algum leitor começar Yukio Mishima por Mar Inquieto, é possível que jamais descubra um dos maiores escritores do século 20. Então, sugiro O Pavilhão Dourado. Alguns autores têm busca estética complexa — procuraram a vida toda não por um estilo apenas ou um só tema. Na literatura brasileira, citemos o caso de Graciliano Ramos. Nunca foi interesse dele escrever Vidas Secas repetidas vezes.

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