Leonardo Sciascia

É bastante interessante o processo de Sciascia justamente porque ele toma um fato até banal no universo das violências cotidianas que estampam jornais marrons e mergulha numa análise político-histórica bastante profunda

Já comentei várias vezes nesse espaço e em outros que o romance policial foi estudado por pessoas muito mais capacitadas que eu. Também já comentei que um discurso não incomum lá pelos anos 1990 chegou a supor que o romance (talvez o romance moderno) fosse todo ele um romance policial. E já comentei — e se não comentei, comento agora — que o romance policial é um subgênero do romance bem mais amplo do que uma simples definição. Há todo tipo de romance policial, o que mistura história, as mais variadas noções de Ciência, misticismo, horror, psicologia e por aí vai. É um cenário bastante amplo e chego a invejar quem estuda isso. Os romances policiais enveredaram para outros produtos culturais, como filmes, séries e até mesmo peças teatrais. No emaranhado discursivo que o romance moderno se transformou, é difícil, por vezes, verificar onde começa um romance policial e onde termina o histórico, ou onde começa um romance político e onde termina o policial e assim por diante. Mas “encontrar o assassino” se transformou nas mais variadas formas de busca pelo erro, pelo culpado, pelo bandido, etc.

Por isso mesmo, definir Sciascia como um escritor de romances policiais pode ser como apontar o homem numa rua e dizer “olha lá, um homem”: é como apontar um grão de arroz numa concha cheia desse cereal e dizer “ó, é aquele grão branco ali” (estou pensando em arroz branco). O Dia da Coruja e Il Pugnalatori são dois bons exemplos do processo de escrita de Sciascia.

É bastante interessante o processo de Sciascia justamente porque ele toma um fato até banal no universo das violências cotidianas que estampam jornais marrons e mergulha numa análise político-histórica bastante profunda. Não importa se o caso se passe em fins do século XIX ou na década de 1960, a questão envolve a violência em si e quem a provocou, a máfia, o sistema jurídico italiano, a polícia (o modo de investigação e suas consequências), a rede de corrupção dentro da qual não fica de fora o homem mais poderoso e o homem mais humilde, para quem a corrupção é tão cultural e, por vezes, defensável. Quando uma sociedade chega a um ponto de considerar a corrupção cultural e por isso defensável, digamos que ela começou a descer uma ladeira sem volta.

A comparação com o Brasil é inevitável, num jogo muito simples de simetrias e inversões. Há a lembrança de um governador da época do regime fascista que perseguia mafiosos, Mori (pois, é, talvez a paixão de certo ex-juiz não seja apenas por camisas pretas, havendo uma luta de gangues da alta roda, por assim dizer), há juízes justiceiros, a indignação popular com a prisão de um “homem de bem, velho, cristão e doente”, mas notoriamente corrupto, há o defensor da canalhice toda, o zé-ninguém que não acredita nela, por má vontade, desinteresse pela história do país ou por cegueira política mesmo, há a corda que arrebenta do lado mais fraco, e há quem paga a conta: o cidadão.

Mas é incrível como Sciascia consegue falar disso tudo numa narrativa curta e ainda mergulhar na psicologia de suas personagens, com análises certeiras e muito precisas, seja de um alcagueta, seja de um investigador de polícia. É interessante, também, perceber não apenas o método de Sciascia como também o fato de que estas duas histórias paralelas (dos dois livros) ocorrem com quase um século de distância uma da outra: lá, como aqui, a corrupção está no DNA da formação do país, por mais que haja mais diferenças que semelhanças culturais entre nós e os italianos.

Mais novo que Gadda e Lampedusa (ícones da literatura italiana do século XX), da mesma geração que Pavese e Moravia (penso nos ficcionistas e não nos famosos poetas italianos), Sciascia é dono de uma linguagem e de um universo próprio, em que a ironia anda de mãos dadas com a análise social feita com um bisturi e uma lupa.

Eu poderia citar uma dezena de grandes autores de policiais, mas hoje era o dia dele.

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